Resiliência em saúde, conceito em disputa
Afinal, o que é resiliência? Palavra da moda em diversos círculos sociais e profissionais, resiliência tornou-se predicado discursivo de toda sorte de atores, de modo que seu significado acaba por se submeter a orientações dos mais variados tipos. Tal noção pode ser lida como síntese do seminário Resiliência em Saúde Pública: desafios e perspectivas, promovido pelo Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz nesta segunda (9). Reuniu pesquisadores brasileiros e estrangeiros que estudam experiências de variados sistemas de saúde.
“O que os EUA querem dizer, politicamente, ao afirmar que querem uma sociedade ‘mais resiliente’? Quem governa a saúde e como? Olho esse conceito dentro de pensamentos complexos. Como medir, conceituar? Isso é uma coisa que passa pela mão dos políticos que lideram a sociedade”, refletiu Anne-Sophie Jung, pesquisadora em governança e saúde global pela Universidade de Leeds.
A referência não é ingênua, uma vez que o país mais rico do mundo se vê às portas de um novo mandato de Donald Trump em sua presidência, e figuras excêntricas como Robert Kennedy Jr assomam como futuras autoridades em órgãos reguladores da saúde nacional. Seu questionamento serve como alerta para que se evite uma automatização da ideia de resiliência como um dado positivo em si. Além disso, sequer pode ser uniforme, uma vez que se aplica de acordo com contextos locais.
Em sua fala, Alessandro Jatobá, um dos mediadores do debate e coordenador do projeto Tecnologia, Informação e Resiliência em Saúde Pública (Lab ResiliSUS) do CEE, afirma que, ao contrário do que se imagina mais comumente, a resiliência de um sistema de saúde não se refere apenas à sua capacidade de resistir a um determinado impacto, como uma pandemia, e recuperar sua condição anterior. Trata-se muito mais de adaptar-se a novas condições.
“Os sistemas de saúde sempre estão a receber novas pressões, diretas e indiretas. Desastres climáticos, epidemias, condições sociais como os tiroteios aqui no Rio, que afetam a vida cotidiana da população… O SUS mostrou muita resiliência na pandemia. Mas não é apenas responder desastres. Esses momentos são reveladores da complexidade de um sistema, sua capacidade de resistir e se recuperar de um determinado evento. Vai além. Devemos conceituar de forma mais holística, considerando condições crônicas”, explicou.
Como exposto pelos pesquisadores, não se volta a um estado anterior, mas absorvem-se novas realidades, que se refletirão na ponta do sistema de saúde e nos problemas com os quais deverá saber conviver.
“Os conceitos de resiliência precisam lidar com a ideia de normalidade. Existem relações de poder que influem no que pode ser uma ideia de resiliência. E quando pensamos emergências de saúde e desastres, quando a pandemia acabou todas as pessoas estavam afetadas, as famílias foram abandonadas, perderam gente”, afirmou Paulo Victor Carvalho, do Lab ResiliSUS.
No entanto, a ideia de normalidade não é estável, como explicou Sophie-Anne Jung. “Nem todos se encaixam numa certa normalidade. Ou como mostrou a covid-19, nem todos voltam à sua condição normal”, disse.
Ou seja, novas doenças ou condições climáticas passam a fazer parte da rotina, com seus respectivos impactos epidemiológicos, o que parece cada dia mais cristalino após acontecimentos como a própria pandemia de covid-19, a catástrofe do Rio Grande do Sul ou grandes períodos de seca em regiões como a Amazônia. Todos os exemplos exigem novas abordagens do poder público, e na prática não é possível voltar a uma situação anterior.
“Sistemas de saúde do século 21 enfrentarão desafios simultâneos e o conceito de resiliência deve refletir suficientemente bem a dinâmica, complexidade e mudanças inerentes dentro de si mesmos”, resumiu Victoria Haldane, da Universidade de Toronto.
Um exemplo brasileiro
Para os pesquisadores estrangeiros, o SUS é um exemplo precioso a ser observado não só por seu caráter universal, público e gratuito. A própria forma de organização e atuação do sistema, em especial através da Estratégia de Saúde da Família, são vistos como um exemplo prático de um sistema de saúde efetivamente resiliente.
“Minha pesquisa se inspira na experiência de Matthew Harris, médico inglês que passou pelo SUS nos anos 1990 e percebeu como uma comunidade oferece condições de mapear sua condição epidemiológica e organizar a ação do sistema de saúde. Seus estudos levaram tempo para ser traduzidos, mas colocaram o Brasil e o SUS em evidência. Na covid-19, comunidades e suas equipes conseguiram resultados na redução de determinadas doenças e condições de saúde da população, com farta evidência de como a participação social influiu nisso”, situou Connie Junghans, da Escola de Saúde Pública do Imperial College de Londres.
Sua fala não só apresentou sentidos práticos a respeito do tema do seminário como destacou como o célebre National Health System (NHS) tenta reproduzir a experiência brasileira de ação em saúde através de uma presença territorial, isto é, um serviço de saúde que opere além do espaço clínico.
“Agora, aparece uma ideia de vizinhança integrada (batizada de Neighbourhood Health Service). E querem trazer os hospitais e médicos de família para dentro de um modelo mais conectado. Começamos um piloto em 2021 com 400 lares. Iniciamos o ‘Modelo CHUI’: amplo, hiperlocal, universal e integrado (comprehensive, hyperlocal, universal, integrated na sigla em inglês). Estamos fazendo treinamentos, cafés comunitários, e interações que servem pra desenvolver práticas básicas em saúde e seu entendimento por todos”, contou.
No sistema inglês, não há a figura do agente comunitário de saúde e visitas domiciliares para coleta de informações com pacientes são realizadas por voluntários, o que limita sua eficácia, mais ainda em tempos onde as condições de emprego e bem-estar retrocederam. E é isso que especialistas em saúde começam a tentar mudar.
“Nossas experiências com agentes comunitários tiveram resultados de até 90% de melhorias em saúde. Isso porque quando as pessoas recebem visitas domiciliares não querem falar de saúde. Falam de diversas questões sociais, criminalidade, emprego, economia… E isso permitiu uma abordagem mais realista. Isso tem tido repercussão na igreja, no parlamento, que levou a todo um debate sobre o futuro do NHS e seu modelo”, completou Connie Junghans.