Magé: a capital do assassinato político no Rio de Janeiro
No ano de 2021, um jornalista percorre a BR-493 em sua Pajero, quando tem o carro fuzilado em plena rodovia ao inclinar-se para ver o celular, sendo salvo pela blindagem do veículo. No mesmo ano, na noite de dia dos pais, um EcoSport vermelho estacionado em uma calma rua de Piabetá, Magé, pega fogo e explode, lançando uma fugaz labareda para o alto. Já em 2007, numa mesa de bar, próximo à baía de Guanabara, um político amado é executado a tiros de pistola enquanto escreve poemas e troca mensagens com colegas e pessoas próximas.
Essas três histórias que a Agência Pública apurou aconteceram em momentos diferentes e ilustram a realidade da violência política em Magé, município limítrofe entre a Baixada Fluminense e Petrópolis, na serra do Rio de Janeiro. Desde 1988, ano da promulgação da Constituição, até hoje, o município teve ao menos 16 homicídios de políticos ou pessoas envolvidas com política, como jornalistas e blogueiros. Isso coloca Magé no primeiro lugar do ranking das cidades com maior número de atentados e homicídios políticos dos 13 municípios da Baixada.
Para chegar a esses dados, a Pública juntou dois bancos de dados – uma base do pesquisador Huri Paz, do Afro-Cebap, e outra do Instituto Fogo Cruzado – com mortes e atentado.
Com 228.127 habitantes, segundo o IBGE (2022), Magé é a cidade mais antiga da Baixada Fluminense, tendo sua origem nas terras dadas por Mem de Sá ao português escravista Simão da Mota em 1565. Altamente dependente da mão de obra escravizada, a cidade teve o começo de seu declínio econômico em 1888, com a abolição da escravatura.
Hoje, um município com 5,3% da população vivendo na zona rural, segundo o IBGE (2010), Magé tem homicídios como parte relevante de seu cotidiano: é o sexto município fluminense com mais homicídios entre aqueles que têm mais de 100 mil habitantes, segundo o Atlas da Violência de 2024.
Segundo a apuração, a violência política em Magé tende a ocorrer sem aviso. Nos três casos citados anteriormente, não houve nenhuma forma de ameaça predecessora.
O jornalista que falava demais
Vinicius Lourenço tinha 15 anos de idade, sendo três de experiência como liderança política no grêmio estudantil do Colégio Estadual de Magé, quando, em 1995, o jornalista de política Mário Coelho Filho o contratou para diagramar seu jornal A Verdade, de circulação municipal.
“Ele foi meu primeiro professor”, refere-se Lourenço, não mais um garoto, mas um homem de barba rala e mãos grossas. À época, o assassinato de Mário Coelho virou palco de briga política na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) entre a família Cozzolino e a Zito, clãs políticos da Baixada e notoriamente desafetos entre si.
Embora formado em jornalismo, muito do que Lourenço aprendeu sobre o verdadeiro modus operandi da apuração política na Baixada, em especial Magé, foi observando o trabalho de seu mentor. Os anos diagramando jornal no software Pagemaker foram brecados pelo assassinato de Mário Coelho em 16 de agosto de 2001, quando, voltando para casa por volta das 18h, recebeu uma última surpresa: três tiros. A suspeita do mandante recaiu sobre o vereador Genivaldo Ferreira Nogueira, o Batata, que acabou sendo absolvido pelo 3º Tribunal do Júri do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro por falta de provas, no ano de 2005.
Mário Coelho era mestre em levantar os piores podres dos políticos de Magé, segundo Lourenço, seu principal defeito era que muitas vezes acabava os extorquindo em troca de não publicar as informações. “O Mariozinho, ele extorquia as pessoas”, explica gesticulando como se estivesse segurando um jornal invisível. “‘Eu tenho essa matéria aqui contra você. Se você não me pagar tanto, eu vou publicar’. E ele publicava.”
Na noite de 17 de agosto de 2021, quando transitava pela BR-493, próximo ao centro dos bombeiros, Lourenço, ouvindo louvor no último volume de seu Pajero com blindagem III-A – o nível mais alto para civis –, recebeu uma mensagem de seu irmão, pai de um casal de sobrinhos, aos quais se afirma muito apegado. “E normalmente quando chega a mensagem dele, eu pego o telefone para ver se pode ser alguma coisa das crianças. Eu virei para o meu lado direito, botei a mão no telefone e olhei. Nisso que eu olhei o telefone, só ouvi o primeiro disparo, deu um estouro.” O carro foi fuzilado de ponta a ponta. Seis tiros.
A investigação do atentado, pelo que se soube, nunca chegou a mandante ou sequer aos nomes dos atiradores. A lista de inimigos de Lourenço não era pequena. Até hoje, não tem certeza da origem da violência que sofreu. Apenas lida com as consequências, como o agravamento de um quadro de depressão e ansiedade e cuidados redobrados que passou a ter: instalou câmeras em casa, aumentou o muro e manteve-se sempre com carros blindados – atualmente tem uma Dodge e um Corolla no vasto quintal de sua casa inacabada na zona periférica da cidade.
Lourenço já havia denunciado gente de todos os espectros políticos em seu jornal Portal Impacto News, que tem versão digital e impressa. Entre os seus alvos mais frequentes estavam Batata, o pipoqueiro que virou dono de farmácias e então vereador com inúmeras acusações públicas e judiciais de orquestrar assassinatos políticos, e também os Cozzolino, uma família que segue revezando cargos de poder em Magé há 50 anos, e que construiu forte laço com o vereador citado.
Vinícius Lourenço sobreviveu a um atentado em 17 de agosto de 2021, quando seu carro foi fuzilado; a investigação não identificou mandantes ou atiradores – Leonardo Coelho/Agência Pública
Sem a certeza do mandante do crime, ele não pode abaixar a guarda para ninguém. Em período eleitoral, quando costuma ter uma alta produtividade de reportagens e denúncias sobre políticos – denúncias que também trataram de polêmicas da vida pessoal -, Vinicius corre mais riscos de gerar desentendimentos, fazendo com que hoje, sempre que sai para fazer suas reportagens, leve consigo quatro seguranças armados de fuzis. São policiais militares de folga, que recebem por volta de R$ 500 por dia, cada um, para protegê-lo de qualquer ameaça. A prática é irregular e os policiais podem ser penalizados. Já o contratante não está cometendo nenhum crime diretamente.
A presença bélica faz com que não se sinta mais inseguro de pisar onde pisa e descrever o que descreve em suas notícias. Fazendo valer a máxima de que, na Baixada, a política é feita na bala.
A genealogia da violência política mageense
A história política de Magé, entremeada de violência política, não pode ser contada sem a história dos clãs locais, especialmente os Cozzolino, uma família presente desde os anos 1930 na cena empresarial e política da cidade.
O primeiro Cozzolino na política foi Renato Cozzolino pai, que foi vice-prefeito de Magé na década de 1970 e depois prefeito entre 1982 e 1986, quando faleceu aos 54 anos. Filiado ao antigo PDS (atual Progressistas) desde o início de sua vida política, o patriarca marcou a cena pela impulsividade contra quem discorda dele que lhe valeu o apelido de “Odorico Mageense”, já que chamava seus opositores de comunistas, segundo reportagens da época.
Antes mesmo de virar prefeito, ainda 1973, vereadores de Magé já denunciaram Renato, então vice-prefeito, por receber salário, o que era inconstitucional à época. Em resposta, Renato perseguiu em um Fusca ao menos um vereador, que o denunciou por agressões sofridas, como mostram reportagens de O Fluminense e O Globo, respectivamente.
Enquanto vice-prefeito, em 1973, Cozzolino foi acusado de agressão e ameaça de morte pelo vereador Aristeu Fernandes Sobrinho – Reprodução
Eleito em 1982, prometeu governar sem ódio, rancores e perseguições, de acordo com artigos da imprensa. Contra as mordomias, Renato disse à imprensa em 1984 que em Magé existia uma “unidade política”. “Aqui não há partidos, só um: o partido de Magé”. A suposta união, porém, sempre foi rachada, já que, um ano depois dessa fala, um comerciante foi preso por conspirar para matar Renato devido a pendências judiciais derivadas de um negócio malsucedido com a prefeitura.
Após morrer em 1986, seus filhos e sobrinhos continuaram o legado Cozzolino, e, desde então, outros cinco membros da família assumiram o Executivo de Magé, com outros seis ocupando cargos no Legislativo estadual.
Em outubro de 1996, Núbia Cozzolino, filha sucessora de Renato Cozzolino na política local desde a década de 1990, denunciou ter sofrido um atentado a tiros, no qual teriam metralhado seu carro. Contudo, três anos depois O Globo publicou que dois policiais reformados – Lenir Malinosky e Dejair Correa, este último ex-assessor de Núbia e que morreu assassinado anos depois – denunciaram que tal situação era uma farsa para “sensibilizar o povo” no período pré-eleitoral.
Um assassinato a cada ano e meio
Não foram falsos, porém, outros atentados em Magé. Na lista feita pela Pública, os assassinatos políticos na cidade começam a aumentar a partir da segunda metade dos anos 1990, com 16 mortos desde 1997, o que dá uma média de um assassinato a cada um ano e meio aproximadamente.
Quase metade dos mortos era de vereadores, sete, enquanto o resto das vítimas vão de assessores, vice-prefeita, candidatos à vereança, suplentes e até cabos eleitorais. Os números são uma amostra da democracia da necropolítica na Baixada Fluminense, vindos de todos os espectros da política local. Até o marido de Núbia, o Ney da Núbia, foi morto a tiros em 2008, em um caso ainda não esclarecido.
Um dos pesquisadores pioneiros dos estudos sobre milícias, José Cláudio Souza Alves, explicou à Pública que relações de proximidade ocorrem em todos os graus na Baixada, “Eu recentemente estive estudando desaparecimentos forçados em um bairro que fui. [Ali], eu pude perceber que os grupos armados que estão naquela localidade convivem entre os moradores locais e entre si”, disse, alinhavando que essa dinâmica faz parte da construção daquelas localidades.
“O momento político eleitoral vai acionar todos esses pertencimentos, porque afinal está se disputando poder, quem vai ter mais estrutura de poder, de mando, de grana, de acordo, de negócios, de tudo que você possa imaginar. Então, essa é uma dinâmica de poder local muito violenta, muito disputada e que produz muitas vítimas e que elas se conhecem”.
Outro sociólogo que estuda o tema, Huri Paz, apontou que a violência na Baixada é praticamente um patrimônio político de grupos tanto criminosos quanto políticos. “Essas mortes não são ocasionadas por defesa de direitos humanos ou defesa de uma pauta mais progressista, ou de uma pauta de esquerda, mas sim disputas entre grupos criminosos”, disse, contextualizando que quem vem de lideranças populares acaba sendo alvo frequente dessa violência, impedindo que outras lideranças locais que não detenham esse patrimônio se candidatem e ocupem cargos na política institucional.
Lídia Menezes: assassinaram uma política negra
O caso da vice-prefeita ex-empregada e ativista política local Lídia Menezes, assassinada em 2002, ajuda a ilustrar esse universo, no que foi considerado por Paz como o primeiro assassinato de uma mulher negra política desde a redemocratização.
Trazida como vice de Narriman Felicidade (PDT), ex-esposa do atual candidato a prefeito de Caxias, Zito, e patriarca do clã de mesmo nome, Lídia ajudou a popularizar a candidatura da outsider Narriman, que desafiou os Cozzolino na própria prefeitura de Magé. Em 2002, menos de um ano e meio após sua eleição, Lídia foi encontrada morta e carbonizada dentro de seu carro na estrada Magé-Manilha.
Em outubro daquele mesmo ano, o presidente da Câmara Municipal e próximo aos Cozzolino, Genivaldo Batata, foi preso como mandante do crime. Segundo os investigadores à época, o plano era afastar a prefeita Narriman e, com a morte de Lídia, assumir o poder.
Em 2001, um ano antes do assassinato de Lídia, Genivaldo Batata também foi acusado pela morte de Mário Coelho – Reprodução
“Lídia conseguiu romper a tradição política dos Cozzolino. E quando eu falo que ela conseguiu romper é porque, sem ela, essa campanha realmente não teria sido bem-sucedida”, apontou Paz, explicando que sua hipótese é que Lídia foi vista, principalmente por ser uma mulher negra, pobre e empregada doméstica, como uma peça no tabuleiro que poderia ser retirada a qualquer tempo.
Vice-prefeita de Magé, Lídia foi assassinada em 2002; o corpo da vítima foi encontrado queimado dentro de carro – Reprodução
À época do assassinato de Lídia, o ex-assessor de Núbia – e de outras gestões – Dejair Correa, que estava atuando como vereador e presidente da Comissão de Segurança da Câmara de Magé, disse à Folha que a cidade tinha virado um verdadeiro barril de pólvora. “Tudo foi meticulosamente planejado e friamente executado, provando a ação de profissionais. Nada pode ser descartado, mas parece ser crime político. Vou entrar com processo na Secretaria da Segurança pedindo atenção especial a Magé, que vive sem condições normais de segurança.”
Dejair apareceu no velório de Lídia com uma escopeta. Mas mesmo assim não sobreviveria mais do que alguns anos após essas aspas.
Morte e vida de Dejair Correa
A cerca de 200 metros da praia da Piedade, na parte mageense da baía de Guanabara, ficava estabelecido o bar do Celinho, ambiente arejado com fluxo constante de clientes na faixa de horário entre almoço e jantar. Por ali passavam políticos, trabalhadores comuns, policiais, toda sorte de pessoas, enfim.
O vereador Dejair Correa era uma dessas figurinhas marcadas do estabelecimento, um quarentão branco, de nariz adunco, sorriso chapado e cabelo de militar, fazendo jus ao passado na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), antes da vida política.
No primeiro dia de fevereiro de 2007, o vereador entrou no bar pela última vez.
Segundo o relato de Célio de Oliveira para a Polícia Civil, naquele dia, Dejair fugiu de seu modus operandi e entrou desacompanhado – logo ele, que nunca era visto com a mesma mulher duas vezes, salvo a esposa –, nervoso, pedindo primeiro uma dose de caipirinha.
Ele se sentou numa mesa próximo a dois caras armados, dos quais desconfiou. “Célio, quem são aqueles?”, teria perguntado, de acordo com o inquérito, sobre os sujeitos que depois ficou esclarecido pelo barman que seriam papiloscopistas da Polícia Civil que trabalhavam num caso da região. David Henrique Sampaio e Ronei Dos Santos Passos se chamavam os agentes estatais. Consta no inquérito que eles notaram o olhar desconfiado do homem que não sabiam ser o vereador, mas preferiram ignorá-lo, percebendo apenas que, ansioso, ele ora falava no telefone, ora mexia no bloco de notas. Fontes próximas ao vereador relataram à Pública que Dejair escrevia poemas em seu bloquinho.
Por volta das 13h, quando Dejair bebia sua segunda caipirinha, um ribombado rompeu a tranquilidade do bar. O vereador, incapaz de alcançar a pistola que carregava, terminou sem vida no chão.
Os dois policiais viram um homem fugindo de moto, mas não conseguiram alcançá-lo. Inúmeras pessoas foram interrogadas pela polícia, de pescadores a outros clientes do bar. Um pescador, por exemplo, havia recém-atracado na praia e brincava com seus filhos quando se assustou e correu para salvar as crianças do que imaginou ser uma troca de tiros.
O laudo cadavérico esclarece a causa da morte como “ferimentos transfixantes e penetrantes do tórax e abdome, anemia aguda, hemorragia interna e ação perfuro contundente”, com cinco perfurações nos membros superiores.
Dejair apareceu no velório de Lídia com uma escopeta – Reprodução
O assassino tinha nome, sobrenome e disposição para entregar os mandantes. Leandro da Silva Costa, à época com 26 anos de idade, não tinha passado de matador, mal sabia atirar, mas precisava de dinheiro e a proposta de R$ 10 mil a R$ 15 mil feita pelo cunhado, o policial militar Alexandre Marques de Oliveira, caiu-lhe bem naquele momento da vida. Em parceria com outro PMERJ cuja participação seguiu não comprovada, segundo a análise do MPRJ, o policial entregou uma pistola 9 mm para o iniciante no crime e indicou que, no final da manhã de 1o de fevereiro de 2007, ele deveria matar o homem que saísse do EcoSportvermelho. O rapaz chegou cedo, por volta das 11h, escondendo-se próximo a uma moita, com vista para uma janela da onde atiraria na hora H. Todavia, assustou-se ao perceber que a vítima seria o adorado vereador Dejair Correa.
Arregou.
Leandro retornou de moto para encontrar Oliveira e, segundo ele, o outro policial, reclamando que, se soubesse quem seria o alvo, não teria aceito o trabalho. Recebeu como resposta uma ameaça à vida: já sabia demais, se não cometesse o crime, seria ele mesmo o primeiro a ir para a vala. Cumpriu o serviço. Voltou, atirou, correu, pilotou, fugiu, escondendo em casa os R$ 10 mil em notas de 50. Tudo isso foi relatado por ele à polícia.
Dejair não parou naquele exato lugar naquela exata hora à toa. Recebera de seus opositores políticos, Núbia Cozzolino, de quem ele fora assessor parlamentar na Alerj e a quem eventualmente acusou de fazer rachadinha e até denunciar na CPI do Narcotráfico – onde ela foi inocentada após perícia – e Genivaldo “Batata”, um convite para ir ao bar do Celinho para uma conversa a sós, segundo o relato de Andréia Guedes Nogueira, amiga do vereador, aos policiais. Ela o aconselhou a não ir a tal encontro, sabendo da má fama dos políticos, envolvidos com escândalos de mortes de rivais. Dejair, por motivos nunca esclarecidos, assumiu o risco.
A Justiça comprovou, eventualmente, pelo cruzamento de relatos e o histórico de atuação de Batata que ele seria o mandante do crime, tendo contratado os policiais militares para a execução que eles, eventualmente, terceirizaram a Leandro.
Embora nunca tenha sido arrolada como suspeita, indiciada ou ré, a matriarca da família Cozzolino teve seu nome citado como parte da reunião de emboscada que nunca ocorreu. Incomodada com o vazamento dessa informação na imprensa, a política chegou a entrar com advogado para pedir acesso à íntegra do inquérito. A prisão preventiva de Batata ocorreu enquanto ele se refugiava no apartamento de Núbia, na zona oeste. Tanto Batata quanto o assassino e Oliveira foram condenados em segunda instância pelo assassinato de Dejair em 2023.
O carro em chamas
8 de agosto de 2021. A cena vem de uma das poucas câmeras de segurança da rua de Pau Grande, no interior de Magé: um carro preto adentra para os fundos da rua e freia duas vezes, sinalizando para dois rapazes numa moto, escondidos na esquina, saberem qual veículo devem atacar: miram no EcoSport 2020 vermelho. Vê-se ao fundo um pequeno clareio que logo explode num clarão.
Eduardo Cézar de Brito Pereira dormia com a filha e a esposa após uma tarde em família comemorando o Dia dos Pais, quando o som do vidro trincando até quebrar acordou sua cônjuge: “Minha esposa tem um sono leve. E ela ouviu o vidro do carro se quebrando e abriu a janela. O carro estava pegando fogo. Estava com o fogo já chegando no volante quando ela me chamou”.
Por considerar a rua em que mora um lugar altamente seguro de Magé, Eduardo tinha o costume de deixar o carro na rua, por vezes até mesmo de vidro escancarado madrugada adentro, sem nunca ter sido sequer furtado. O susto com as chamas então foi tremendo: “Eu abri a janela quando eu vi e saí disparado. O portão estava fechado, ela [a esposa] não quis me dar a chave. Quando eu volto para pegar a chave, o carro explodiu. Eu tinha computador, eu tinha dinheiro, eu tinha documentos dentro do carro”.
O estado final do carro de Eduardo Cézar após ser incendiado – Arquivo pessoal
Após o arrefecimento das chamas, Eduardo contatou um amigo aposentado da PMERJ, apelidado Marcão, um homenzarrão alto, gordo e careca, que ri jocosamente das próprias piadas. O amigo bateu o olho na cena e apontou para a primeira coisa que lhe chamou atenção: a pedra no banco do passageiro. Eles quebraram o vidro para conseguir incendiar o veículo. “Magé é uma cidade considerada uma das mais violentas do Brasil no que se diz respeito a crimes políticos”, diagnostica Marcão.
Eduardo não é político, mas trabalha diretamente contra eles. Com uma longa carreira proletária, passando por chão de fábrica, suinocultura e todos os trabalhos manuais que se possa imaginar, o senhor alvo, de cabelos igualmente brancos começou a carreira como blogueiro e comentarista político há 14 anos, quando um amigo dono de rádio comunitária em Piabetá, bairro de Magé, fez o convite para que atuasse fazendo aquilo que seus amigos já sabiam ser uma especialidade sua: criticar políticos descaradamente.
Sua linguagem ácida se tornou sucesso tão logo pegou num microfone com radiotransmissão pela primeira vez. Todavia faltava-lhe um apelido de respeito. Eduardo, naquele período, havia começado o relacionamento com sua atual esposa, a oitava, pelo que se lembra. O problema era que a anterior havia tatuado seu nome e ele fez o mesmo, ficando então constrangido com a marca do amor predecessor em seu antebraço. Para evitar confusões futuras com a atual, foi ao tatuador e mandou que desse um jeito, pois carecia de ideias para cobrir aquilo. Tatuou uma tarja preta sobre o nome da ex e, com isso, evocou o espírito zombeteiro dos amigos, terminando com o apelido Dudu Tarja Preta, que se tornou oficialmente seu nome de blogueiro e comentarista.
Em pouco tempo, já tinha blog próprio, seguidores fiéis, uma amizade duradoura com Vinicius Lourenço, por quem nutria um intenso sentimento de respeito pelo trabalho de jornalismo político em Magé, e, além de tudo isso, Eduardo angariava inimizades políticas aos montes. Ele, contudo, diferencia-se de seu amigo Lourenço ao não expor nenhum fato da vida pessoal dos políticos, focando suas críticas e notícias denuncistas nos problemas de gestão.
Ele suspeita que seu atentado tenha sido motivado por sua agitação política contrária à lei aprovada na câmara de vereadores em junho daquele ano que permitia que Magé recebesse lixo de outros municípios, reabrindo, assim, o lixão local. A decisão foi acompanhada de pressão do prefeito Renato Cozzolino para revogação da lei que garantia proteção ambiental. “Dias antes, eu fiz uma matéria sobre a mudança da lei do lixo em Magé, onde o Executivo e o Legislativo mudaram a lei de destinação de lixo para o seguinte. A partir dessa lei, Magé poderia receber lixo de outras cidades, consorciadas, nesse caso”, explica.
Ele suspeita que o atentado foi motivado por sua oposição à lei que permitia a Magé receber lixo de outras cidades – Leonardo Coelho/Agência Pública
O caso parou na polícia e, desde a primeira vez que foi interrogado, Eduardo não foi mais chamado para depor nem perante juiz nem perante delegado, diz ele. Com o tempo, perdeu ânimo e deixou a história para lá, uma vez que a coisa parecia que não andaria para a frente – e não andou. Por mais traumática que pudesse ser a situação, ao fim, Eduardo não se sentiu amedrontado. Não recebera ameaça alguma antes do atentado e tampouco depois. Assim, continua a gravar vídeos e escrever textos afrontivos direto de seu escritório, com livros sobre Magé, uma cama de solteiro para descanso (“meu divã”, descreve), um equipamento de som robusto e um radiotransmissor Polyvox Stereo Receiver 1500.
“Não tenho medo de nada. Pedi a mulher pra ir embora, ela não quis ir. Tive, durante uns seis meses, proteção dos direitos humanos. Mas a proteção não tinha ninguém me escoltando, nem nada. Tinha um telefone que pegava, ligava se precisasse. Nunca precisei.
Nunca vi mais nada. Ando de madrugada a pé, não tenho mais carro, porque agora tem facilidade de aplicativo. Ando de aplicativo, ando de bandalha, ando de ônibus, se precisar de bicicleta”, explica.
Edição: Bruno Fonseca