O X da questão: imaginando futuros e mundos para além do poder das big techs
Neste quinto e último texto da série o X da questão: big techs e democracia, nós do Intervozes convidamos você leitora, você leitor do Brasil de Fato, a pensar para além dos 280 caracteres ou de 10 segundos de vídeo: existe vida para além das grandes plataformas digitais? Este é um exercício programático e de imaginação tecnopolítica, de desaperto das mentes exauridas por telas controladas por algoritmos opacos a serviço de interesses econômicos e políticos de multibilionários. Nesses tempos em que está difícil até mesmo respirar, imaginar caminhos, tecer juntos histórias de futuro e amplificar narrativas de outros mundos – que não o do poderio sem limites das big techs – é já afirmação de resistência a essa realidade que nos embrutece e desumaniza.
Diante da pergunta acima, as respostas mais imediatas talvez venham em forma de memes. Paisagens idílicas que apontam ou para um passado pré-internet ou para um futuro em que os servidores de conexão seriam desligados. Como nos folhetos outrora distribuídos de casa em casa apregoando um paraíso perdido a ser alcançado pela fé – imagens agora comuns em memes nas redes sociais – estaríamos todos sentados, num grande pic nic, cercados de quedas d’água, flores e bichinhos, imunes à desinformação, ao discurso de ódio, ao caos informacional. Protegidos do poder econômico-político de empresas de tecnologias. Nesse atalho mental embarcamos por uma vereda perigosa: a nostalgia de algo que não foi.
Indo um pouco além das primeiras imagens que a pergunta provoca, chegamos à necessidade de olhar o passado para projetar o futuro. Lembrar o processo histórico de conformação da internet que temos hoje, um processo de privatização da construção de tecnologias que em poucas décadas deixou de lado a utopia de uma rede horizontal, livre e aberta, para se firmar no modelo proprietário e concentrado das grandes plataformas digitais. Nesse modelo, as big techs, assentadas no colonialismo digital e no lucro sem limites, definem as formas de circulação da informação, lucram com a plataformização de políticas sociais, de saúde, de educação, reconfiguram a forma como fazemos política, capturam nosso tempo e nossa atenção, interferem na nossa subjetividade e nas nossas relações pessoais.
Mas é esse poderio desmedido das grandes plataformas digitais que queremos desnaturalizar: se algo tem início pode também ter um fim. Experiências populares de resistência frente a megaempresas e megaprojetos que lucram com a destruição de territórios e modos de vida de pequenos agricultores e povos e comunidades tradicionais são formas de contra-atacar que nos inspiram no enfrentamento das plataformas digitais. Encontrando brechas, fissuras, costurando e cosendo formas autônomas de vida e de tecnologias, tensionando por dentro e criando suas próprias defesas e seus próprios ataques, essas experiências, ao mesmo tempo que resistem à destruição provocada pelas megaempresas, ousam imaginar um futuro sem elas.
Mais poder para os povos, menos poder para as plataformas
Desde o Sul Global e, especificamente, da América Latina, diversas organizações da sociedade civil têm buscado caminhos para regular a forma que se dão os processos de curadoria e moderação de conteúdos pelas plataformas digitais, forçando brechas para que a balança de poder penda mais para as pessoas e menos para os multibilionários como Elon Musk e Mark Zuckerberg, que concentram e controlam o mercado de dados global.
O documento "Padrões para a regulação democrática das grandes plataforma digitais que garanta a liberdade de expressão online e uma internet livre e aberta" apresenta recomendações sobre princípios e medidas específicas de co-regulação e regulação pública para proteger as liberdades de expressão, informação e opinião dos usuários de plataformas que se contrapõem tanto às insuficientes medidas de autorregulação propostas pelas próprias empresas quanto às propostas de regulação muitas vezes autoritárias apresentadas pelos Estados.
A lista incluiu recomendações para que a moderação de conteúdos que já é feita pelas plataformas digitais, em uma espécie de censura privada e sem transparência, seja feita de forma compatível com os padrões internacionais de direitos humanos, levando especialmente em consideração a proteção de maiorias minorizadas e grupos vulnerabilizados.
Para se efetivar, essa proposta esbarra no pesado lobby desenvolvido pelas grandes plataformas digitais, que são contrárias à regulação, e na inação dos governos, como tratamos no terceiro texto desta série. Se a atuação de Elon Musk e da plataforma X ganhou maior visibilidade no embate de forças com o Estado brasileiro, não podemos esquecer o trabalho cotidiano de outras plataformas, como o Google e a Meta (dona do Facebook, do Instagram e do WhatsApp), para barrar qualquer tentativa de regulação, como nas propagandas em veículos de mídia e mesmo nas próprias plataformas contra o PL 2630/2020.
No entanto, a pauta da regulação de processos é somente uma parte das formas de resistência contra as grandes plataformas digitais. Nesse sentido, o Intervozes realizou, em dezembro de 2023, o seminário "Big techs, informação e democracia na América Latina". O evento, que contou com organizações e ativistas de diversos países da América Latina e do Caribe, chegou a alguns acordos sobre como enfrentar o poder das grandes plataformas digitais e fomentar alternativas.
As discussões se voltaram para quatro eixos temáticos: regulação democrática de processos de moderação; regulação econômica do mercado digital; soberania tecnológica; e educação midiática. A premissa é que não basta regular o ambiente digital mantendo a internet formatada e dominada pelas grandes plataformas digitais, mas avançar na regulação do mercado, de forma a quebrar os monopólios e oligopólios e fomentar a existência de novas plataformas e novos agentes que possam criar e recriar a internet; desenvolver tecnologias não proprietárias e a partir de políticas públicas que possam enfrentar o domínio dos grandes monopólios com sede nos países do Norte Global e servir aos interesses das pessoas, dos povos e comunidades tradicionais, dos movimentos sociais, dos grupos vulnerabilizados; e criar condições para que as pessoas possam navegar de forma autônoma, participativa e criativa pelas redes digitais.
Entre as propostas originadas no seminário, estão a de pensar em uma agenda latino-americana com objetivo de buscar os consensos e estruturar os pontos em comum sobre a regulação econômica das plataformas digitais; incidir para que os Estados latino-americanos criem infraestruturas públicas para viabilizar a criação de plataformas públicas; e mapear aplicativos públicos (municipais, estaduais) e desenvolvidos por cooperativas e movimentos sociais que inspirem novas soluções digitais.
Provocadas pela questão que abre este texto, colhemos novas propostas a partir de uma chuva de ideias com ativistas do Intervozes. Em relação à regulação, destacamos a criação de uma taxação específica de grandes plataformas digitais vinculada a um fundo para a democratização do acesso à comunicação e a políticas de educação midiática.
Defender a alegria, organizar a raiva
Sabemos que enfrentar um inimigo poderoso como as big techs é uma tarefa anti-sistêmica, ou seja, aponta, por fim, ao enfrentamento ao capitalismo e ao colapso socioambiental que ele engendra. Pensando em sentido mais amplo, ao tempo que fortalecemos alianças tático-estratégicas para incidir na governança dessa internet na era das big techs, vamos também costurando resistências que vão além da reação, na direção do contra-ataque. Construir, criar e fortalecer tecnologias autônomas desde uma perspectiva feminista, anti-racista, em coerência e não em adaptação ou confronto com a vida do planeta também tem sido eixo do nosso fazer político.
Junto a parceiras do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais de Sergipe, por exemplo, temos provocado que tecnologias que constroem comunidades, preservam a vida e que são feministas são aquelas que nós somos capazes de construir, programar e reprogramar autonomamente, são replicáveis e respondem às demandas coletivas, comunitárias e territoriais. Para tal, propomos imaginar tecnologias baseadas em uma lógica que não seja a da hiperconexão e da hiperatenção, mas que possa construir pontes e redes que sirvam aos encontros presenciais, à ocupação e à mobilização nas ruas, em outros tempos que neguem a aceleração e resistam à plataformização da vida e à superexploração do planeta.
As redes comunitárias de internet, por exemplo, têm sido alguns desses espaços de imaginação de outro modelo de internet a partir da prática, da auto-organização, da autoformação. Nesse sentido, apontamos a necessidade de investimento público para que movimentos sociais, organizações comunitárias, povos e comunidades tradicionais tenham possibilidade de desenvolver tecnologias que atendam às suas demandas, sobretudo para criar vínculos, reivindicar suas pautas e preservar e fortalecer suas culturas locais.
Em paralelo a isso, ousamos imaginar uma vida em que as arquiteturas das tecnologias digitais focadas no hiperconsumo sejam substituídas por tecnologias que promovam a solidariedade e o bem comum e que haja uma abordagem sob a ótica de saúde pública sobre o funcionamento das plataformas.
Também destacamos a criação de estruturas tecnológicas públicas, com participação popular na sua gestão, e o investimento em políticas públicas que estimulem o desenvolvimento de tecnologias próprias para uso na educação, na saúde, na assistência social etc., substituindo os contratos que hoje fortalecem o poder das big techs, que modelam inclusive a forma como essas políticas são feitas.
A construção de uma internet a partir dos interesses das cidadãs e dos cidadãos exige ainda mais investimento público na pauta do direito humano à comunicação, incluindo uma educação crítica para a mídia.
Também reforçamos a necessidade de banimento das tecnologias de reconhecimento facial na segurança pública, como demanda a campanha Tire meu rosto da sua mira, e a suspensão de investimentos públicos em Inteligência Artificial, considerando o seu profundo impacto no agravamento da crise energética e das injustiças climáticas e socioambientais.
Nano techs, muitos mundos
Se a utopia serve para caminhar, visualizamos o fim das big techs, a quebra dos monopólios digitais e reivindicamos que a cadeia produtiva de tecnologias seja exposta e combatida em sua marcha de esgotamento da água, do solo, dos minérios e de outros bens comuns. Nesse imaginário, podemos pensar em nano techs, e em redes de nano techs, que funcionem numa lógica não monopolista, criadas a partir de demandas locais, cujo objetivo central não é o lucro e sim a justiça social, racial, de gênero e ambiental. O mercado de dados como está posto, controlado pelas big techs, entraria em colapso. Propomos inventar tecnologias que não destruam o planeta, que não sujeitem as pessoas às suas dinâmicas, mas, numa lógica inversa, que sirvam à justiça socioambiental, ao cuidado e à vida.
Vamos costurando ideias nesse exercício de imaginar, formando redes coloridas em resistência ao domínio das big techs, dos monopólios de mídia e também dos megaempreendimentos minerais, do agronegócio, da indústria bélico-militar e suas tecnologias capitalistas, patriarcais e racistas de dominação, destruição e morte.
E você, qual sua proposta para construirmos outras vidas para além das big techs? Que outros mundos você imagina?
Com a colaboração de Alfredo Portugal, Eduardo Amorim, Gyssele Mendes, Patrícia Paixão, Paulo Victor Melo e Rodolfo Vianna.
*Iara Moura é jornalista, mestra em Comunicação pela UFF e coordenadora executiva do Intervozes. Olívia Bandeira é jornalista, doutora em antropologia e coordenadora executiva do Intervozes.
** Este texto faz parte da série "O X da Questão: big techs e soberania tecnológica", parceria entre Brasil de Fato e Intervozes
*** Este é um artigo de opinião e não necessariamente reflete a linha editorial do Brasil de Fato.