Deslocados climáticos do RS e uso inadequado da categoria jurídica do refúgio
A situação do deslocamento forçado de mais de 600 mil pessoas no Rio Grande do Sul em decorrência do evento climático de maio deste ano passou a ser tratada de forma recorrente por diversos meios de comunicação como sinônima à situação de refúgio, associando-se ao conceito de “refugiados ambientais ou climáticos”. Uma associação que chama atenção para o drama e o flagelo humano de quem vivencia esta condição traumática do deslocamento forçado, que necessita proteção, acolhimento e amparo, e como pressão para a inserção no debate político da agenda de políticas públicas para as vítimas dos desastres socioambientais.
Todavia, o conceito jurídico de refugiado nasce de uma gênese sociopolítica muito distinta, com especificidades genuínas das migrações forçadas internacionais, que apontam para uma gama de desafios que não são compartilhados com as particularidades dos deslocamentos forçados internos.
O primeiro grande desafio que diferencia tais categorias jurídicas é o da securitização associada às migrações internacionais, que restringe o direito de migrar internacionalmente à vítima de perseguição procurar e gozar de asilo em outros países (artigo 14, da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948). Ou seja, o próprio deslocamento territorial, para além de uma fronteira, decorrente de uma situação forçada, portanto humanitária, já representa uma primeira barreira associada ao reconhecimento como sujeito de direitos a partir desta condição. Significa dizer que o refugiado, até ser assim considerado e receber a proteção do país de acolhida, é um solicitante de refúgio, está sujeito ao julgamento estatal do país de recepção, sujeito a toda sorte político-jurídica deste Estado.
Na construção psicossocial da ideia de Estado-nação, que é xenófoba, o estrangeiro/imigrante aparece para apontar a falta ou a ameaça inconsciente do desamparo que todo sujeito carrega. Por isso, as migrações internacionais são admitidas quando inseridas na chamada hospitalidade condicionada, discutida por Jacques Derrida, definida pelos pactos, pela reciprocidade, que nega a migração como um direito humano. Portanto, o ato de migrar há que ser justificado, legitimado, controlado. Isso potencializa uma série de violações de direitos humanos.
As migrações forçadas, por exemplo, entram, a partir dos pactos internacionais, na excepcionalidade que, paradoxalmente, é restritiva da definição jurídica permissiva para o ato de migrar. O principal documento internacional é a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, incorporada no Brasil pela Lei 9474/1997, que institui o Estatuto dos Refugiados, o qual ampliou o conceito de refugiados para acolher aquele adotado na Declaração de Cartagena de 1984. Por este documento legal, além da proteção à vítima do fundado temor de perseguição por raça, religião, nacionalidade, grupo social e opinião política, o Brasil protege a vítima da grave e generalizada violação de direitos humanos.
Assim, a situação dos migrantes internacionais forçados em decorrência das mudanças climáticas e da situação socioambiental não encontra expresso amparo nesse diploma legal. É um conceito ainda em disputa para ser inserido na excepcionalidade permissiva da lei internacional.
Apesar de o Estatuto dos Refugiados estabelecer as hipóteses para o reconhecimento da situação de refúgio, a análise é administrativa, passa por um processo de elegibilidade. Embora as migrações forçadas também estejam amparadas na Lei de Migração, de 2017, pela motivação ou categoria da “acolhida humanitária”, que inclui a calamidade de grande proporção e o desastre ambiental, é preciso uma análise governamental que associa condições objetivas por países de origem.
Passado pelo desafio de poder ser acolhido em um outro país, o refugiado então ingressa na zona do desconhecido, ou nas palavras de Edward Said, no “perigoso território do não-pertencer”, carrega uma “fratura incurável” que existe entre o ser humano e o lugar natal decorrente da migração, do exílio, como um descontínuo, uma ausência permanente. Precisa conviver com uma cultura diferente, com a barreira linguística, com situação desfavorável para o acesso a todos os demais direitos como educação, trabalho, saúde, dentre outros.
Uma condição humana que requer políticas públicas muito específicas e, guardadas as proporções, distintas daquelas que devem assistir a população nacional deslocada forçosamente dentro de seu próprio país, pois são desafios também diferentes no campo do reconhecimento. O desastre ambiental ocorrido no Rio Grande do Sul no mês de maio pautou a urgente demanda por uma Política Nacional para Deslocados Internos, para reconhecer como sujeito de proteção a vítima do drama de um deslocamento forçado, que também carrega os traumas de um desastre, da desestabilização e ruptura das condições de vida, das raízes territoriais, e para assegurar respostas de reintegração, regresso, reparação etc, a exemplo da iniciativa do Projeto de Lei do Senado 2.038/2014.
Além desse PLS, o Projeto de Lei 1.594/2024 visa instituir a Política Nacional dos Deslocados Ambientais e Climáticos para estabelecer a garantia geral de direitos a partir das violações decorrentes dos desastres socioambientais. Estes projetos ampliam o espectro da Lei 12.068/2012, que define a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, a qual reconhece várias categorias associadas aos deslocamentos forçados e a situação de proteção diante de desastres e emergências.
O debate acerca das categorias jurídicas é de fundamental importância, pois situa no campo político, necessariamente, os fatos a partir das múltiplas realidades e das particularidades que são essenciais para o avanço da agenda do reconhecimento de direitos humanos. Sem este debate estrutural comprometido com os cenários políticos e sociais que se apresentam, traduzidos em categorias jurídicas de proteção, respostas adequadas às mais variadas situações de vulnerabilização ficam mais distantes.
* Professora do departamento de Direito da UFSM, coordenadora do Migraidh e da Cátedra Sérgio Vieira de Mello.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul