COP30 e alimentação: quais os desafios postos à mesa?
Belém (PA), uma metrópole sediada na Amazônia Legal, foi a cidade brasileira escolhida para sediar a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, evento amplamente conhecido como COP30, a ocorrer em novembro de 2025. Com efeito, neste artigo desenvolvo algumas reflexões que possam contribuir com o desafio não apenas de alimentar o público da conferência, mas problematizar de modo mais amplo a questão da fome no chão da Amazônia e outras questões imbricadas ao tema.
Reconhecida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como cidade criativa da gastronomia, título que divide com as suas congêneres Paraty (RJ), Belo Horizonte (MG) e Florianópolis (SC), não há dúvidas que as culturas alimentares – no plural mesmo – do estado do Pará e de Belém se configuram como um elemento forte quando qualquer pessoa pensa em visitar este pedaço do Brasil. Pato no tucupi, tacacá, maniçoba, vatapá, açaí com peixe frito, dentre tantos outros pratos, passam a configurar a lista de desejos daqueles que pisam em terras paraenses.
A questão é que, a considerar um estado com 12 regiões de integração, 144 municípios banhados por rios gigantescos como o Xingu, Amazonas, Tapajós, Arapiuns, Tocantins, Araguaia, uma extensão territorial de 1.248.000 km², uma população de mais de 8 milhões de pessoas e uma diversidade étnica composta por povos indígenas, comunidades quilombolas, extrativistas, ribeirinhos e camponeses, é uma ilusão reduzir a diversidade alimentar a estes pratos, os quais, não podemos negar, contam com o indiscutível apoio da mídia para sua difusão. O Pará é tudo isso e muito mais. Quem já ouviu falar no frito do vaqueiro, no filé marajoara, nos mingaus de miriti e açaí, nas infinitas caldeiradas elaboradas com peixes saborosos dos rios paraenses? Ah! Não dá para descrever aqui. Afinal, o que caracteriza a cozinha paraense?
Todas essas comidas são elaboradas com ingredientes da sociobiodiversidade (vegetal e animal) amazônica e envolve matérias-primas principais e coadjuvantes nos seus preparos. São peixes, carnes de caça, ervas de temperos, plantas alimentícias, frutos, óleos, farinhas, sementes, castanhas. Tais produtos não são buscados longe, mas encontram-se presentes em nossas florestas, rios, quintais, mangues, roçados. Podem ser adquiridos em feiras, mercados populares e até em supermercados.
Traduzem a sabedoria ancestral, a cultura e o trabalho realizado por camponeses, agricultores e agricultoras familiares, povos indígenas e comunidades tradicionais que desenvolvem a agricultura, a caça, a pesca, o sistema de criação e a coleta de frutos (extrativismo). Todo esse processo incorpora o que é conhecido como “sistemas alimentares sustentáveis”, pois abrange sobretudo o cuidado com a natureza e o bem viver desde a produção, armazenamento, passando pela comercialização, distribuição, até o consumo final.
Práticas agroecológicas assentadas no não uso de veneno, no fortalecimento das relações sociais entre produtores e produtoras, no bem viver, na defesa dos territórios e maretórios, e na produção de alimentos com fortes laços à memória e identidade dos grupos sociais, são as linhas mestras desse modelo de produção alimentar ancorado na agricultura familiar. Tal modelo produz “comida de verdade” para a mesa da população, mas também gera renda, ajuda na conservação da natureza, estimula o bem viver e auxilia consideravelmente no equilíbrio do clima.
É muito distinto do agronegócio, sistema alinhado com as injustiças sociais, destruição do ambiente, e focado na monocultura, produzindo commodities que não alimentam o povo brasileiro. Já a agricultura familiar baseia-se no princípio da diversidade. Em qualquer estabelecimento de produção familiar é comum encontrar roçados com diversas variedades de mandioca, hortas e quintais produtivos com criação de galinhas, porcos, caprinos, frutas, plantas medicinais e até algumas cabeças de gado para o consumo familiar.
Embora tenhamos avançado bastante em termos de políticas públicas, ações e estratégias do Governo Federal para o combate à fome, os desafios continuam postos. Em 2006, por meio da Lei nº 11.346, foi criado o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e outras providências. No dia mundial da alimentação, 16 de outubro de 2024, foi lançado o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo) e em março deste ano de 2024 foi publicado o Decreto Nº 11.936, o qual dispõe sobre a composição da cesta básica de alimentos no âmbito da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e da Política Nacional de Abastecimento Alimentar, destacando a valorização dos produtos agroecológicos, da agricultura familiar e da sociobiodiversidade, recomendando principalmente a atenção à cultura alimentar de cada região e a inclusão de produtos in natura nas cestas básicas como meio de combater os alimentos processados e ultraprocessados, os quais têm trazido inúmeros problemas à população. Outro ponto importante foi o retorno do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), que havia sido desativado no governo anterior.
Embora tenhamos avanços considerados como já dito acima, o estado-sede da COP por vir apresenta realidades e indicadores aterradores. Recentemente o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou os indicadores de insegurança alimentar, demonstrando que o Norte, pela primeira vez, apresentou os piores índices (39,7%), ficando na frente do Nordeste, que teve o percentual de 38,8%. O Pará foi em 2023 o estado com maior proporção de domicílios com insegurança alimentar grave (9,5%), seguido do Amazonas (9,1%), Amapá (8,4%) e Maranhão (8,1%).
Os presentes números são condizentes com aqueles já apontados em 2022 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). Os domicílios chefiados por mulheres, aqueles sediados na zona rural, são os que mais sofrem os agravos da fome. Quando comparados os índices entre homens e mulheres, e cor da pele, teremos que as mulheres e a população negra enfrentam os indicadores mais graves.
Fora isso tudo, temos as questões fundiárias e os conflitos por terra, que ajudam a agravar ainda mais a insegurança alimentar e nutricional da população, na medida em que a insegurança jurídica territorial com a falta de titulação de terra e demarcação de terras indígenas tornam esses sujeitos ainda mais vulneráveis. Assim, suas terras sagradas tornam-se o tempo todo alvo de investidas de grileiros, fazendeiros, madeireiros, grandes projetos e toda a sorte de horror, afetando seus sistemas agrícolas e, não obstante, seus direitos territoriais e de vida.
Somente no estado do Pará, de acordo com a Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu), são mais de 800 comunidades quilombolas autodeclaradas, a grande maioria já reconhecida pela Fundação Cultural Palmares. Entretanto, menos de 10% têm suas terras tituladas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) ou pelo Instituto de Terras do Pará (Iterpa).
Importa acrescentar ainda os dados de violência no campo, com mortes, inclusive. Os relatórios elaborados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) dão conta de apresentar os números assustadores de conflitos no campo e assassinatos nos estados da Amazônia. Somente em 2023, foram 31 pessoas assassinadas por conflito no campo e, desse total, 14 eram indígenas, um dado vergonhoso para o Brasil. Sem contar os casos de violência por contaminação com agrotóxicos, que afetaram em 2023, de acordo também com relatório da CPT, 336 pessoas. Este foi o tipo de violência mais comum registrado, seguido por ameaças de morte, intimidações, criminalizações, detenções e agressões.
Como o Estado brasileiro e o Governo do Pará vão explicar esse conjunto de indicadores aos órgãos internacionais de direitos humanos? Como é possível pensar em equilíbrio climático na Amazônia e no Brasil diante de realidades tão cruéis? O que comer durante a COP? Produtos do agronegócio que impulsionam os indicadores aqui socializados? Tudo isso tem muito a ver com alimentação, afinal, sem terra titulada não há segurança para a produção alimentar, assim como não se pode ter “comida de verdade” quando o campo está repleto de injustiças sociais, veneno e ausências de políticas públicas.
Penso que é muito importante os organizadores da COP considerarem esses elementos constituintes dos cardápios de temas e de comidas, afinal, será uma vergonha para o Brasil, país-sede, botar na mesa a carne do município que tem o maior rebanho de gado bovino do Pará e também a pecha de um dos maiores desmatadores da floresta amazônica, São Félix do Xingu, segundo dados do site do Imazon. Ou então servir o arroz da morte oriundo da Ilha do Marajó, cuja produção tem investido pesado no veneno que está contaminando o solo, as águas e as famílias quilombolas, depois de ter devastado áreas a perder de vista de florestas cheias de caça, roças e bacurizais que alimentavam comunidades locais.
Esperamos que não passemos a mesma vergonha quando da Cúpula da Amazônia e Diálogos Amazônicos, eventos ocorridos em Belém em agosto de 2023, quando tínhamos no interior do Hangar, Centro de Convenções da Amazônia, apenas uma loja da Bob’s e alguns poucos food trucks na área externa para uma refeição rápida em estilo fast food. Viam-se em diversas áreas do Hangar estações de água mineral com copos descartáveis a produzir resíduo sólido indiscriminadamente, algo que não deveria acontecer, nem nestes eventos e nem em circunstância alguma.
O Consea Nacional, na tentativa de colaborar com a sustentabilidade do evento, publicou uma série de recomendações para que os organizadores da COP possam considerar em termos de alimentação. Mas é necessário, de modo contundente, pensar em estratégias urgentes e de forma planejada. Arrisco-me a sugerir algumas:
1) Que o planejamento da alimentação da COP seja pensado por um conjunto de instituições (estilo um Grupo de Trabalho – GT) com experiência consolidada neste campo, incluindo universidades, ministérios, Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Consea, sociedades científicas como a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), movimentos populares, organizações da sociedade civil com acúmulo neste tema, com participação efetiva de entidades paraenses.
2) Criar uma central de abastecimento de alimentos saudáveis para a COP30, com produtos oriundos da agricultura familiar camponesa, agroecológicos e da sociobiodiversidade amazônica e brasileira. Essa estratégia deve priorizar a inclusão social e produtiva de agricultores e agricultoras familiares, povos indígenas, camponeses e comunidades tradicionais, estimulando a produção dirigida com geração de renda, valorização da cultura e estímulo à diversidade.
3) É importante valorizar não apenas produtos, mas suas histórias, origens, cosmologias, formas de produzir, modos de preparar, maneiras de consumir, afinal, comer implica ingerir nutrientes, mas também elementos simbólicos, igualmente relevantes. Comemos para satisfazer uma necessidade orgânica-fisiológica e também espiritual. Neste sentido, a cultura alimentar deve estar presente.
4) Cozinheiros, cozinheiras e chefs devem trabalhar de forma integrada e com inclusão de representantes dos povos indígenas, comunidades tradicionais e camponeses, com direito ao recebimento de cachê ou pró-labore financiado pelo estado brasileiro.
5) Estimular a inclusão da cultura material das cozinhas paraense e brasileira em modo de exposição, oficinas e cursos para o público interessado, incluindo aí cestarias, panelas (de pedra, de barro, de ferro), tigelas, cuias, fornos, pilões, utensílios, colheres de pau, pratos, etc.
6) Observar de modo contundente a destinação de resíduos orgânicos – Fazer o quê? Destinar para onde? Por quem? – e evitar totalmente a produção de lixo a base de plásticos e metais. Caso ocorra nesse formato, é necessário a inclusão de cooperativas com pagamento pelo serviço prestado.
7) Produzir material de divulgação, comunicação, em forma de aplicativos, catálogos, revistas contendo informações como espaços de comedoria (que não devem se chamar praça de alimentação), cardápios, imagens e descrições amplas das comidas e de quem as produziu (comunidade, cozinheiro/a, etc.).
8) Estimular a inclusão alimentar com “comida de verdade” e preços acessíveis, se não gratuita, para o público mais vulnerável.
9) É preciso investimento desde já para estimular a produção e armazenamento de produtos e geração de renda para os camponeses, povos indígenas e comunidades tradicionais, sob o risco de certos produtos não estarem disponíveis na altura da COP, na medida em que muitos deles são de safras curtas, como o bacuri, miriti e castanha-do-pará, cujas produções ocorrem no princípio do inverno (entre janeiro e março).
10) Valorizar as experiências do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), do Movimento Camponês Popular (MCP) e de várias cooperativas, que produzem alimentos saudáveis em grande escala colocando-os à disposição da sociedade. Iniciativas como o Armazém do Campo e das Cozinhas Solidárias e Populares devem ser abraçadas.
11) É necessária uma força-tarefa para, junto com esse processo de produção de “comida de verdade” com soberania e democracia para o público da COP, não deixar de agilizar processos a fim de titular os territórios quilombolas e acelerar as demarcações de terras indígenas para uma Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN) com segurança jurídica territorial.
Sem terra titulada para quem produz alimento saudável, protege a floresta e colabora com o equilíbrio climático, não se pode ter uma COP plena e verdadeiramente comprometida com as questões da Amazônia. Esse é um dever do estado brasileiro.
*Flávio Bezerra Barros é PhD. Professor Associado da Universidade Federal do Pará (UFPA) e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq na área de antropologia
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.