Ampliar governança federal sobre o Cerrado é chave para o combate às mudanças climáticas
A boa notícia de que a devastação da Amazônia caiu 62,2% no último ano merece ser comemorada, mas o desmatamento do Cerrado subiu 67,7% e isso não pode ser ofuscado. Desde o debate político para aprovação do Código Florestal, em 2012, o Cerrado foi colocado como bioma de sacrifício.
A possibilidade legal de conversão de até 80% das propriedades rurais, na maior parte do bioma, é entendida como uma meta a ser alcançada, independente de critérios socioambientais que deveriam orientar o processo de autorização de supressão de vegetação.
Áreas de recarga de aquíferos e mananciais, prioritárias para biodiversidade, provedoras de inúmeros serviços ecossistêmicos, e territórios de povos e comunidades que deveriam ser protegidos, têm sido devastados numa velocidade impressionante.
A ênfase na proteção da Amazônia é super relevante, e nela o governo federal tem maior capacidade de gestão e governança nas ações de comando e controle feita por órgãos ambientais como Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), em função do grande número de áreas protegidas e terras públicas sob sua jurisdição.
No Cerrado, pelo contrário, a maior parte dessas atribuições está nos órgãos estaduais de meio ambiente, que enfrentam forte pressão política e econômica para favorecer a expansão do agronegócio, sobretudo na região do Matopiba. É expressivo que 47% de toda a perda de vegetação nativa do país no ano de 2023 tenha ocorrido nessa região.
O Cerrado é o coração das águas do Brasil. Dele, provêm as águas de oito das 12 principais bacias hidrográficas do país, responsáveis por grande parte da geração de energia hidrelétrica, mas também pela provisão de água para abastecimento industrial e urbano. O bioma é responsável pela ciclagem da água que vem dos rios voadores da Amazônia para a região centro-sul do país, e pela regulação dos regimes hidrológicos essenciais para a economia.
A correlação entre desmatamento e alterações climáticas é bem evidenciada na diminuição da vazão de águas em diversas bacias hidrográficas no norte de Minas Gerais, no oeste da Bahia e sul do Piauí. Na verdade, dados recentes da Agência Nacional de Águas (ANA) sobre o impacto das mudanças climáticas nos recursos hídricos do Brasil projetam para 2040 uma redução superior a 40% na capacidade hídrica de diversos rios, em todas as regiões do país.
Dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (Cemaden/MCTI), de 2024, mostram a evolução de áreas suscetíveis à desertificação, com a expansão de 52% do semiárido na região do Matopiba (370 mil km2), entre 2005 e 2023. Pela primeira vez aparece o registro de uma região com clima árido (5.700 km2) no Brasil, entre os estados da Bahia e Pernambuco.
Desastres climáticos estão se repetindo no país nos últimos anos. Petrópolis (RJ), Ilhéus (BA) e São Sebastião (SP) sofreram com eventos extremos. Em abril deste ano, no Maranhão, um grande número de cidades também ficaram inundadas, e, em maio, o Rio Grande do Sul foi palco de uma grande tragédia. A seca na Amazônia e o fogo no Pantanal são exemplos de que o clima já mudou.
É preciso mudar também o olhar e a ação política dos governos federal e estaduais para garantir políticas de adaptação e mitigação à altura dos desafios que se apresentam. A influência do bloqueio atmosférico causado pela concentração de calor no centro-oeste do país impediu a disseminação das chuvas, que se concentraram no Rio Grande do Sul. E, como consequência do aumento do desmatamento no Cerrado, é possível projetar que esse cenário se repita no futuro.
A capacidade de ação e governança federal nas políticas de comando e controle sobre a conversão de vegetação nativa do Cerrado precisa ser aumentada. É fundamental estruturar critérios que regulem a conformidade das autorizações de supressão de vegetação nativa e outorga do uso da água, sob responsabilidade dos estados, com critérios mais rigorosos e consequentes com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil nas agendas de clima e conservação da biodiversidade. Hoje, o processo de concessão de licenças para desmatar nos estados não observa sequer a simples validação das informações do Cadastro Ambiental Rural (CAR).
Aumentar o rigor nesse processo vai na direção oposta ao que o Congresso Nacional vem trabalhando para aprovar, com novas alterações na lei geral do licenciamento e no próprio Código Florestal, que favorecem ainda mais o avanço sobre e a devastação dos ecossistemas. Então, é preciso um verdadeiro pacto federativo e freio de arrumação para conter autorizações de desmatamento sem conformidade socioambiental.
Os dados divulgados pelo MapBiomas em seu relatório anual mostram que somente 9,23% da área desmatada em 2023 no Cerrado não possui indício de ilegalidade. O Cerrado foi o bioma com maior aumento de área desmatada dentro de reserva legal: um aumento de 136%, totalizando 136.368 hectares de perda de vegetação nativa em reserva legal, em um ano.
Está evidente a falta de ação pública efetiva para conter essas ilegalidades nos estados, e a baixa capacidade de gestão federal para implementar o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado (PPCerrado), lançado em 2023.
Mas, também é preciso registrar: está faltando coerência e compromisso por parte do setor produtivo (produtores e comercializadores de commodities) com uma agenda de agricultura de baixo carbono efetiva, livre de desmatamento e conversão de ecossistemas.
Parte essencial da solução está no próprio mercado, que tem feito vistas grossas e, inclusive, se posicionado contra normativas que procuram livrar as cadeias de suprimento de produtos com origem em áreas desmatadas, a exemplo da nova lei europeia que regula a importação de commodities. Iniciativas como esta têm potencial para diminuir o impacto do consumo de carne, soja, óleo de palma, entre outros produtos, nas mudanças do clima e perda de biodiversidade.
Ampliar a transparência e rastreabilidade nas cadeias de suprimento de commodities pode favorecer muito as políticas de controle do desmatamento e contribuir para a identificação e responsabilização das conhecidas "maçãs podres" do agronegócio. Somente numa conjunção de esforços públicos e privados será possível alcançar a meta anunciada mundo afora pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de desmatamento zero em 2030.
É preciso despertar para a realidade de que a sobrevivência do Cerrado, de seus povos e comunidades, e suas contribuições para regulação do clima e conservação da biodiversidade, será chave para fortalecer quaisquer estratégias nacionais de adaptação e mitigação.
*Guilherme Eidt é coordenador de Políticas Públicas e Advocacy do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN)
**Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.