Um ano depois de referendo sobre Essequibo, Venezuela denuncia articulação dos EUA para colocar bases militares na Guiana
Um ano depois do referendo para ouvir a opinião da população sobre a incorporação da área disputada de Essequibo, o governo da Venezuela denunciou a instalação de bases militares dos Estados Unidos na Guiana. De acordo com o presidente Nicolás Maduro, o plano para montar as unidades militares é articulado pelo Comando Sul, braço de atuação das Forças Armadas dos EUA para a América do Sul.
O chefe do Executivo venezuelano diz ter se baseado na visita feita pelo presidente da Guiana, Irfaan Ali, ao novo chefe da instituição, Alvin Holsey, em 6 de dezembro. O novo dirigente do Comando Sul assumiu o lugar da general Laura Richardson, que se aposentou. Maduro disse que a Comunidade do Caribe (Caricom) deve ficar atenta às ameaças estadunidenses à região.
“Atenção Caricom, tem esse aventureiro lá no Comando Sul e ele está tentando montar bases militares na nossa Guiana Essequiba. Quem é o provocador? Quem é o violador? Quem é o entreguista que se arrasta para os interesses militaristas do império estadunidense? Que cada um tire suas próprias conclusões", afirmou o presidente em seu programa Maduro de Repente.
A fala de Maduro foi ecoada por uma nota do Ministério das Relações Exteriores da Venezuela. O comunicado afirma que as ações conjuntas entre Estados Unidos e o governo da Guiana violam o Acordo de Genebra de 1966 e cumprem uma agenda “bélica” promovida pela Casa Branca na América do Sul.
“A consolidação das instalações militares do Comando Sul dos EUA na Guiana, incluindo o uso militar do campo de aviação Brigadeiro Gary Beaton localizado em Essequibo, Guiana, é inaceitável e representa uma nova provocação da República Cooperativa da Guiana”, diz o texto.
Essa não é a primeira vez este ano que a Guiana busca afinamento político com outros países. Desde o referendo realizado na Venezuela para discutir uma incorporação do território do Essequibo, outros atores internacionais entraram na disputa, com ameaças dos EUA e o envio de um porta-aviões do Reino Unido para a costa da Guiana.
Em maio, uma oficial militar dos EUA também visitou a Guiana. A embaixada estadunidense no país chegou a dizer que a diretora de Estratégia, Política e Planos do Comando Sul dos EUA, Julie Nethercot, esteve na Guiana para supervisionar o “planejamento estratégico, o desenvolvimento de políticas e a coordenação da cooperação em segurança para a América Latina e o Caribe”.
Dias depois, a embaixada dos Estados Unidos na Guiana anunciou a realização de exercícios militares no país sulamericano. A representação estadunidense na Guiana afirmou que dois aviões militares dos EUA fizeram um sobrevoo sobre Georgetown e a região. O governo da Venezuela respondeu em publicações na rede social, nas quais ministros chamaram a medida de “ameaça à paz regional”.
Para o ex-embaixador da Venezuela na ONU Victor Rodriguez Cedeño, a viagem de Irfaan Ali aos Estados Unidos na semana passada é mais um passo em um afinamento militar da Guiana com a Casa Branca.
“Os EUA definitivamente respaldam a posição da Guiana e na minha percepção a Venezuela cometeu erros estratégicos nessa relação com a Guiana. Esses movimentos militares são um passo para mostrar esse alinhamento de defesa da Guiana, mesmo que a Venezuela tenha direitos para reclamar. Não sei até onde vamos chegar com isso, mas acho que se esse assunto do Essequibo voltar no ano que vem, os EUA vão entrar de cabeça para discutir, porque as empresas estadunidenses estão diretamente envolvidas nisso”, afirmou Cedeño ao Brasil de Fato.
A proposta de incorporação do Essequibo foi aprovada por 95,93% dos 10,5 milhões que votaram. Mas logo depois do referendo, Maduro e Irfaan Ali se reuniram para discutir a disputa pelo território. Pelas redes sociais, a Presidência venezuelana celebrou o encontro e disse que os mandatários manifestaram "disposição de continuar o diálogo para dirimir a controvérsia em relação ao território do Essequibo".
O presidente da Venezuela promulgou em março uma lei sobre Essequibo. A "Lei Orgânica pela Defesa da Guiana Essequiba" pretende oficializar a decisão tomada em referendo pela população no ano passado de tratar o território do Essequibo, em disputa com a Guiana, como um estado venezuelano.
Para Cedeño, no entanto, essas medidas mostram uma estabilização na disputa histórica pelo Essequibo que não deve avançar nos próximos meses. Ainda assim, há uma série de interesses de empresas estrangeiras nas reservas de petróleo que hoje estão no território guianes que devem interferir nessa disputa.
“A lei foi política, já que o governo sabia que não faria nada no território em um primeiro momento. O interesse principal era anexar o território, mas não seguiu. Acho que esse assunto vai ficar inerte nesse momento porque há questões políticas mais importantes na Venezuela. Fato é que há um interesse econômico muito grande que vai pautar os próximos passos."
ExxonMobil e o interesse no Essequibo
Um dos principais agentes interessados no território é a empresa estadunidense petroleira ExxonMobil. A companhia descobriu petróleo na Guiana em 2015, mas começou a extrair só em 2019 e implementou 5 projetos para a região.
A Guiana, então, entregou concessões para que a empresa pudesse explorar as reservas que são estimadas em mais de 11 bilhões de barris de petróleo e fizeram o PIB guianês ser o que mais cresce no mundo, segundo projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI). Hoje, a empresa produz 650 mil barris de petróleo por dia no país sulamericano.
Por esses resultados, a Guiana se tornou o terceiro país produtor de petróleo com crescimento mais rápido fora da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep). A economia guianesa cresceu 49,7% no primeiro semestre de 2024 e o setor petroleiro representou 67% desse aumento.
A Exxon tem uma sociedade com outra empresa petroleira estadunidense, a Hess Corp. Segundo a companhia, a meta é aumentar a produção para 1,3 milhão de barris diários até o final de 2027.
Em dezembro de 2022 a empresa avançou ainda mais na sua busca pelo petróleo guianês. A ExxonMobil entrou no leilão para comprar oito dos 14 blocos de exploração de petróleo e aumentou ainda mais a tensão entre Georgetown e Caracas. Em março, a empresa petroleira estadunidense descobriu o poço de petróleo Bluefin, localizado no bloco Stabroek, exatamente na costa de Essequibo.
Maduro voltou a criticar a participação da empresa na Guiana e disse que o país virou uma “colônia da Exxon Mobil”.
“Econômica e politicamente, a ExxonMobil governa a Guiana. Nada se move na Guiana se não tiver a ordem da ExxonMobil. É muito vergonhoso para a dignidade do povo do Caribe. Irfaan traiu a história do país como República. A Guiana será agora a colônia da ExxonMobil e atuará como uma colônia", afirmou o presidente.
A disputa em torno do território do Essequibo respinga também na discussão em torno de uma nova delimitação do território marítimo dos países, que são os terrenos alvos de disputa em torno das reservas de petróleo.
“Sem dúvida a riqueza petrolífera na plataforma continental que é a projeção do território Essequibo é um dos fatores fundamentais. Acho que as decisões que vão se tomar esse ano depois das questões políticas envolvendo governo, oposição e outros países, vai ser muito importante para 2025 e vai gerar uma confrontação sobre a delimitação marítima, que ainda não está definida pelas questões territoriais”, afirmou Cedeño.
O presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, não falou sobre o assunto ainda, mas para Cedeño, não deve haver mudanças significativas em relação a gestão de Joe Biden. Segundo o ex-embaixador, a política será a mesma.
Histórico do caso
Venezuela e Guiana se agarram a documentos e versões diferentes da história para embasarem seus argumentos, levantando discussões sobre fatos que ocorreram até mesmo quando ambos os países ainda eram colônias. Durante as guerras de independência na América Espanhola, as autoridades britânicas que então controlavam a Guiana ocuparam os territórios a oeste do Rio Essequibo, fato que só foi contestado pela Venezuela após a independência.
Anos de disputas deram origem ao chamado Laudo de Paris, resolução emitida em 1899 por um grupo independente de cinco juristas que decidiu que os domínios sobre o Essequibo eram britânicos. 50 anos depois, em 1949, a Venezuela alega que o laudo deveria ser anulado pois haveriam provas de um suposto conluio entre advogados do Reino Unido e um dos juízes que participou do processo.
No entanto, uma denúncia formal pedindo a anulação do Laudo de Paris só foi apresentada por Caracas em 1962, processo que iniciou a elaboração e posterior assinatura dos chamados Acordos de Genebra, em 1966. No documento, assinado meses antes da independência da Guiana pelas três partes – venezuelana, britânica e guianesa – o Reino Unido reconhece a reclamação da Venezuela sobre o território e se compromete a negociar diretamente com o país na busca por uma solução.
O prazo limite para um acordo definitivo sobre o Essequibo era de quatro anos, período que foi esgotado em 1970 sem uma resolução final e que culminou na assinatura do chamado Protocolo de Porto Espanha, no qual a Venezuela concordou em uma espécie de "trégua" de 12 anos nas reivindicações sobre o território.
Já em 1982, Caracas voltou a exigir controle sobre o Essequibo, sempre se apegando aos Acordos de Genebra. O governo da Guiana, por sua vez, alega que o Laudo de Paris ainda é valido e que, portanto, suas fronteiras estão delimitadas e incluem o território do Essequibo.
Negociações entre Caracas e Georgetown medidas pelo secretário-geral da ONU ocorrem desde os anos 1990, mas foi após as descobertas petroleiras de 2015 que o tema passou a ser tratado com mais ênfase pelos países. Em 2018, alegando a ausência de concordância das partes, o secretário das Nações Unidas, António Guterres, recomenda que o caso seja levado à Corte Internacional de Justiça (CIJ), ato que foi referendado pela Guiana e é contestado pela Venezuela até hoje, por não reconhecer a legitimidade do Tribunal em Haia sobre a questão.
Em junho de 2024, a Venezuela pediu à CIJ que a Guiana volte a negociar o território. A ideia do governo venezuelano é que a discussão seja feita com base no Acordo de Genebra. Segundo o representante do país na ONU, Samuel Moncada, a discussão precisa ter um desfecho “efetivo, prático, aceitável e satisfatório” para as duas partes.