Nestlé, Coca-Cola e Danone: França terá mobilização contra empresas engarrafadoras de água neste final de semana
Como parte das atividades que marcam o Dia Mundial da Água, celebrado nesta sexta-feira (22), a coalizão francesa Stopembouteillage (ou Pare com o engarrafamento da água, em tradução livre) realiza em toda a França mobilização para denunciar a apropriação da água subterrânea por empresas multinacionais como Nestlé, Coca-Cola e Danone, e os impactos ambientais desse processo.
A mobilização começa no sábado (23) com um protesto contra o projeto de uma nova fábrica de engarrafamento na comuna de Dieuze, no departamento de Moselle, na região administrativa do Grande Leste francês.
“Em um contexto de aquecimento global, essas reservas de água subterrânea são a garantia que a gente tem para o futuro próximo e elas devem continuar ali”, defende o ativista ambiental brasileiro Franklin Frederik, radicado na Suíça, que integra a coalizão.
Diante das sucessivas ondas de calor que atingiram a Europa nos últimos anos, Frederik considera que a questão do engarrafamento de água, e os impactos ambientais desse processo, devem estar no centro da discussão.
“Alguns países proibiram regar o jardim, fecharam as piscinas públicas mas não tocaram nas empresas de engarrafamento de água, que continuam tendo a permissão de explorar o quanto elas querem e lucram com as ondas de calor, quando aumenta a procura por água engarrafada nas ruas.”
Na França, quase 100 fábricas usam águas subterrâneas para produzir refrigerantes ou água engarrafada. Como resultado, as cidades de Vittel, Volvic, Salvetat e Perrier são algumas que enfrentam hoje problemas com captação de água.
A extração subterrânea interrompe o ciclo natural da água e reduz a disponibilidade desse recurso, aponta Franklin. “A situação ficou tão absurda que o governo tinha proposto construir uma espécie de aqueduto subterrâneo para trazer água de outra cidade para abastecer Vittel, para que a Nestlé pudesse continuar a exploração de água naquele aquífero. O Coletivo Água 88 se mobilizou e conseguiu impedir esse projeto”.
Em janeiro deste ano, uma investigação dos veículos franceses Le Monde e Radio France revelaram uma fraude praticada pela Nestlé, empresa que detém mais de um terço do mercado de águas engarrafadas na França. A empresa vendia águas que passaram por processos de purificação, como sendo água mineral. Além de contrariar as regras do setor, a água mineral é comercializada por preços até 100 vezes maiores que as águas tratadas.
“A própria Nestlé confessou que ela estava filtrando a água engarrafada. Isso é um problema, porque essa água teoricamente é vendida como água natural pura. Se ela está sendo filtrada, por que então pagar tão mais caro do que uma água de torneira?", questiona Frederik.
Segundo a investigação, passaram por esse processo marcas como Perrier, Vittel e Pure Life – esta última comercializada no Brasil com o nome Pureza Vital. O grupo Nestlé reconheceu a prática e afirmou que um terço das marcas produzidas pela empresa na França passam por esse processo, enquanto o relatório obtido pela reportagem do Le Monde e Radio France aponta que todas as marcas da empresa passaram por purificação, com a conivência do governo francês.
Com a receptividade da sociedade francesa após a revelação dessa prática, a Coalizão Stopembouteillage foi lançada publicamente no contexto das ações do Dia Mundial da Água. “O pessoal já estava se preparando e aproveitou o impacto midiático para lançar essa coalizão, que vem sendo construída há algum tempo. Em um país como a França, com água de torneira de excelente qualidade, não podemos continuar permitindo que essas empresas engarrafem a água", enfatiza Frederik.
Diálogo com o Brasil
O processamento da água feito pela Nestlé que veio à tona na França este ano, tem paralelo no Brasil. O processo começou em 1997, quando a empresa perfurou um poço em São Lourenço (MG) para comercializar a marca Pure Life e descobriu que a água continha alta quantidade de ferro, o que a tornava imprópria para o engarrafamento.
A empresa procurou na época o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM – substituído pela Agência Nacional de Mineração) e fez um pedido para separar o ferro da água, e depois comercializá-la como mineral. O DNPM negou o pedido, alegando que o Código das Águas Minerais no Brasil exige a manutenção das características de origem e não permite esse tipo de alteração.
“Como já havia muito investimento envolvido, a solução da empresa foi buscar a aplicação de uma portaria do Ministério da Saúde, de 1995, que permitiria comercializar água potável adicionada de sais”, explica Ana Paula Lemes, pesquisadora da UFRJ sobre questões jurídicas que envolvem a água mineral, e faz estágio de seu doutorado na Universidade de Coimbra, em Portugal. O caso foi apresentado pela pesquisadora aos coletivos franceses durante a primeira reunião pública da Coalizão Stopembouteillage na Académie du Climat em Paris na última segunda-feira (18).
A partir de portaria de 1995 do Ministério da Saúde, a Nestlé conseguiu autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para comercializar o produto com a denominação de água “mineralizada”, por meio de um processo de desmineralização das águas, com alteração de sua composição química e a adição de sais minerais. “Foi uma manobra regulatória”, aponta Ana Paula Lemes.
Descoberta a manobra, comunidades locais se mobilizaram contra a empresa por meio do movimento Cidadania Pelas Águas e saíram vencedoras de uma disputa judicial com a Nestlé, que assinou um acordo com o Ministério Público para encerrar a ação em março de 2006.
“Os moradores locais se constituíram como vencedores na disputa, já que, ao fim da ação judicial, a Nestlé foi proibida de continuar engarrafando a Pure Life. Vale ressaltar que esse desfecho bem-sucedido foi possível graças a uma série de alianças que fortaleceram o movimento da época, Cidadania pelas Águas.”