Manifestações marcam os 48 anos do golpe que instaurou última ditadura militar na Argentina
Neste domingo (24), a organizações de direitos humanos, movimentos populares e partidos de esquerda foram às ruas na Argentina na marcha para homenagear as vítimas da última ditadura no país (1976-1983), instaurada há 48 anos por meio de um golpe civil e militar. Na data é celebrado o Dia da Memória pela Verdade e Justiça, que marca a reivindicação pelo esclarecimento dos crimes cometidos durante o período autoritário e a punição dos responsáveis.
Milhares de pessoas protestam em vários pontos do país, mas a concentração principal é na Plaza de Mayo, em Buenos Aires. Ali milhares de pessoas trouxeram cartazes sobre a importância da memória e rejeitando a negação dos horrores da ditadura, que são discurso habitual do atual presidente Javier Milei. “Memória sim, medo não” e “tudo fica guardado na memória”, eram algumas das frases dos menifestantes.
A presidente da associação Avós da Plaza de Mayo, Estela de Carlotto, foi a primeira a falar no principal evento do dia. "Hoje é um dia histórico, com mobilizações massivas, e é uma demonstração de que o povo está enfrentando esse governo neofascista. Precisamos fortalecer a unidade e a organização para defender a democracia", disse ela, diante de milhares de pessoas que se reuniram na Plaza de Mayo.
"Nossos parentes e companheiros estavam lutando por uma sociedade mais justa, igualitária, solidária e soberana. É por isso que eles foram levados. Nós, organizações de direitos humanos, levantamos as mesmas bandeiras no auge do genocídio, quando saímos para enfrentar a ditadura mais sangrenta. E fazemos isso hoje, porque o governo de Milei está vindo para tudo: para nossos direitos, para nossa soberania e para nossa liberdade", continuou Estela.
Marcha pela Memória, Verdade e Justiça / Belen de Los Santos
A manifestação na Plaza de Mayo foi uma das maiores dos últimos 40 anos de democracia na Argentina. Foi a primeira vez em 40 anos de democracia que o evento ocorreu em um contexto em que o governo nacional nega que tenha havido 30.000 desaparecidos. Javier Milei é o primeiro governo negacionista na história da Argentina.
Taty Almeida, integrante das Madres de Plaza de Mayo Línea Fundadora, logo no início de seu discurso exclamou: “Temos 30 mil motivos para defender a Pátria”. Para ela, é preciso uma forte unidade dos diferentes grupos para defender a democracia e derrotar o ódio. “A unidade das forças políticas e sociais, dos sindicatos e dos movimentos de direitos humanos, dos feminismos e das diversidades deve ser um mandato urgente para organizar a resistência e gerar as alternativas necessárias para acabar com tanto sofrimento”, disse Almeida.
"Vemos no governo de Milei atitudes de extrema crueldade e violência contra aqueles que pensam de forma diferente. Ele nega as contribuições que os movimentos populares, os movimentos de mulheres e as organizações de direitos humanos fizeram ao longo desses 40 anos de democracia. Um governo que não está a serviço do povo, está contra o povo. Reafirmamos nosso compromisso com os direitos humanos que nos afetam diariamente: alimentação, saúde, educação, moradia, cultura e trabalho. E também com as crianças e os jovens. Com a sociedade, o estado e o meio ambiente que deixamos para eles. Devemos fortalecer os valores fundamentais dos direitos humanos, da solidariedade e da proteção coletiva", concluiu ela.
O ganhador do Prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel, também participou do evento central na Plaza de Mayo e destacou que “o governo de Milei e (a vice-presidenta Victoria) Villarruel está executando, de forma brutal e acelerada, o plano de ajustamento mais implacável destes 40 anos de história democrática".
“Dias depois de tomar posse, implementaram uma desvalorização que significou uma enorme perda de salários e pensões. Pretendem desmantelar o sistema laboral, previdenciário e previdenciário com as piores receitas do neoliberalismo. ajuda. Interromperam a entrega de alimentos às cozinhas populares. É necessário que sejam restauradas imediatamente. É claro: a única coisa que este plano gera são lucros extraordinários para alguns e fome para a maioria. Nos bairros populares há é uma emergência humanitária sem precedentes no nosso país. Lembramos a este governo que deve ter em mente que com ódio, repressão e vingança não se pode construir uma sociedade mais justa e fraterna", criticou Esquivel.
Mural da memória / Belen de Los Santos
Tensões
A marcha deste ano foi marcada por um clima de tensão na véspera, diante da disputa pelo significado da data. Desde a campanha eleitoral o presidente ultraliberal Javier Milei e sua vice Victoria Vilarruel, contestam os dados oficiais e negam o número de desaparecidos durante o regime de exceção. Na sexta-feira (22), Vilarruel ironizou a mobilização do 24 de março e usou o termo "festejar" para se referir à celebração dessa data trágica na história do país.
"Estamos em um estado democrático, se querem festejar o golpe, vão lá", disse a vice de Milei. Questionada sobre o uso do termo, ela afirmou que "há claramente uma morbidez" em relação à data, "porque toda a vida da esquerda parece que vai desaparecer se no 24 de março não fizer ser escutada sua mensagem ininterrupta há 40 anos". Hoje, o governo Milei divulgou um vídeo com o título “Dia da Memória pela Verdade e Justiça”, deturpando informações sobre o período.
Em uma entrevista à rádio Delta, também na sexta, a presidente das Avós da Praça de Maio, principal organizadora da mobilização de domingo, Estela Barnes de Carlotto respondeu à fala da vice-presidente. “Isto não é um festejo, mas sim manter viva a memória, saber o que aconteceu nessas datas para que não volte a acontecer. Não queremos que as novas gerações passem pelo que passamos de ter que procurar nossos filhos e netos devido a uma ditadura feroz”.
Marcha pela Memória, Verdade e Justiça / Belen de Los Santos
Na quinta-feira (21), outra organização que luta pelos direitos-humanos na Argentina, Hijos (Filhos e Filhas pela Identidade e Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio), denunciou a agressão sexual e ameaça de morte a uma de suas integrantes, que atribuíram a uma motivação política.
"Estes atos têm uma clara relação com as ações e os discursos de ódio que as autoridades máximas do país expressam cotidianamente e incita a violência contra nós que militamos pelos direitos humanos. Exigimos o imediato esclarecimento do fato por parte do poder judicial e responsabilizamos o governo nacional pelos fatos ocorridos”, diz o comunicado da organização.
Punição dos crimes
Diferente do Brasil, onde os militares que cometeram crimes durante a ditadura (1964-1985) permanecem impunes, na Argentina nove líderes das três primeiras juntas militares que governaram o país após o golpe de Estado de 1976 foram condenados. Os julgamentos de crimes da ditadura no país foram reabertos em 2004 com Políticas de Estado de Memória, Verdade e Justiça no governo de Néstor Kirchner (1950 – 2010).
Em torno de 1.100 repressores foram julgados após a declaração de inconstitucionalidade das leis de proteção: Lei de Ponto Final (1986), instituída um ano após o primeiro grande julgamento das juntas militares, e lei de Obediência Devida (1987), na qual os feitos cometidos pelos membros das forças armadas não eram puníveis por, supostamente, terem agido em virtude de obediência devida.
48 anos do Golpe
Na madrugada do dia 24 de março de 1976, um golpe de Estado derrubou a presidenta argentina María Estela Martínez, conhecida como Isabelita Perón, que assumiu o poder em 1974, após a morte de seu marido Juan Domingos Perón (1895 – 1974), de quem era vice. O golpe foi comandado por uma junta militar formada pelo general Jorge Rafael Videla, pelo almirante Emilio Massera e pelo brigadeiro Orlando Agostí. A junta militar comandada por Videla dissolveu o Congresso, afastou os juízes e suprimiu as liberdades de imprensa e de expressão no país.
Sob a justificativa de combater a "influência socialista", os militares instauraram um regime de terror, com sistemática violação dos direitos humanos.
Um ano após o golpe, o jornalista argentino Rodolfo Walsh publicou uma carta em que denunciava as torturas e mortes causadas pela repressão instaurada no país, assim como a piora da qualidade da vida e o aumento da miséria devido à má gestão econômica da junta militar. "O que vocês chamam acertos são erros, os que reconhecem como erros são crimes e o que omitem são calamidades", escreveu o jornalista na "Carta aberta de um escritor à Junta Militar".
"O que vocês liquidaram não foi o mandato transitório de Isabel Martínez, mas a possibilidade de um processo democrático onde o povo remediaria males que vocês continuaram e agravaram", escreveu Walsh.
"A política econômica dessa junta só reconhece como beneficiários a velha oligarquia de grãos, a nova oligarguia especuladora e um grupo seleto de monopólios internacionais encabeçados pela ITT, Esso, empresas automobilísticas, USSteel, Simenes, às quais estão ligados pessoalmente o ministro Martínez de Hoz e todos os membros do seu gabinete", diz o último texto publicado pelo jornalista. Dias depois da publicação da carta, Walsh se tornou mais um desaparecido pela ditadura militar argentina.
Coordenação internacional da repressão
A Ditadura Civil Militar na Argentina fazia parte do chamado Plano Condor, uma coordenação repressiva entre as diferentes ditaduras que governavam a América Latina na época (como Bolívia, Brasil, Chile, Uruguai e Paraguai) e o governo dos Estados Unidos.
Washington estava encarregado de fornecer apoio logístico, propagandístico e econômico por meio do Departamento de Estado dos EUA e da CIA às várias ditaduras para "combater o comunismo".
Além disso, os EUA foram responsáveis pelo treinamento das forças militares ditatoriais no Instituto do Hemisfério Ocidental para Cooperação em Segurança, mais conhecido como Escola das Américas. Membros das forças armadas latino-americanas aprenderam métodos de tortura, assassinato e repressão em grande escala contra setores sociais que "distribuíam propaganda em favor de grupos extremistas de esquerda ou de seus interesses e simpatizavam com manifestações ou greves", de acordo com o Manual de Estudos de Contrainteligência da Escola, um documento desclassificado em 1996.
Lenço das mães da Plaza de Mayo / Belen de Los Santos