Irã deve retaliar Israel mesmo que haja um cessar-fogo em Gaza, diz analista iraniano
A próxima retaliação do Irã a Israel não será interrompida mesmo que um cessar-fogo em Gaza seja acordado. É o que disse Hamidreza Gholamzadeh do grupo de reflexão iraniano Casa da Diplomacia, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, em Teerã, capital do Irã.
Gholamzadeh explica que o objetivo principal do país, desde o início da fase atual do genocidio da população palestina, sempre foi o de forçar um cessar-fogo. Mas após os últimos ataques de Israel direcionados ao Irã, onde foram assassinados quatro soldados iranianos, as respostas serão uma “punição” a Israel por ter ameaçado a integridade e segurança iranianas.
Gholamzadeh, que também é secretário-geral do Fórum de Prefeitos Asiáticos, não acredita que esforços diplomáticos com Israel, ou instâncias internacionais como o Conselho de Segurança da ONU, possam ter sucesso na obtenção de um cessar-fogo por parte de Israel. “A única linguagem que eles entendem será a de um comando forte”, diz o especialista iraniano.
Sobre os Estados Unidos, o analista disse que o país não possui esperança em uma mudança nas relações com Washington. Uma possibilidade seria a iniciativa de diálogo que Barack Obama iniciou em 2009, mas cuja disposição foi rapidamente abandonada para retomar ou manter os posicionamentos e medidas como sanções ao Irã, segundo o intelectual.
Um dos principais objetivos dos Estados Unidos é deter o desenvolvimento do programa nuclear iraniano. O Irã, por sua vez, afirma que sua indústria nuclear é desenvolvida apenas com fins pacíficos.
Confira os principais trechos da entrevista:
Brasil de Fato: Depois de mais de um ano de ataques em Gaza, Israel não só não atende os pedidos massivos de cessar-fogo, como está até expandindo a sua guerra, agora para o Líbano. O Irã tem apoiado os palestinos e também foi atacado. Qual é a estratégia iraniana?
Hamidreza Gholamzadeh: O Irã tem apoiado os palestinos, não só desde a Revolução no Irã, mas também antes. Depois da revolução, foi efetivamente inscrito na Constituição e transformado numa política básica da República Islâmica, para apoiar os palestinos e ser contra o regime israelense. Este apoio já existe há muito tempo, e agora, desde ano passado, enfrentamos este genocídio em Gaza e, agora, o atual massacre no Líbano.
Desde os primeiros dias após o 7 de outubro do ano passado, os iranianos disseram que esta guerra precisava acabar e que o Irã apoia os palestinos. Toda a rede de resistência na região tenta parar esta guerra ou pelo menos reduzir a tensão, se envolvendo em algum conflito com o regime israelense, a fim de impedi-lo de atacar Gaza de forma mais massiva.
Com essa abordagem tentamos ajudar os palestinos e gradualmente avançamos. Depois o regime israelense iniciou o conflito contra o Irã. Você deve se lembrar que em abril eles atacaram nossa seção consular em Damasco [capital da Síria] e logo nós retaliamos com alguns ataques de mísseis, depois tivemos alguns outros assassinatos. Finalmente, [tivemos] o assassinato de [Ismail] Haniya, dentro de Teerã, no mesmo dia da posse do novo presidente [Masoud Pezeshkian].
Depois de um tempo, o Irã chegou a ter uma certa esperança, com base nos comentários de outros países ocidentais, de que poderia haver algum cessar-fogo em Gaza. E por causa disso, o Irã decidiu suspender qualquer retaliação naquele momento, por conta do assassinato de Haniya. Porque, para os iranianos o cessar-fogo e o fim da matança de pessoas em Gaza é o mais importante. E toda a história deste ano que passou, todo o apoio foi para esta causa: ajudar os palestinos e parar esta máquina de guerra em Gaza.
Mas, infelizmente, depois de quase dois meses não só o cessar-fogo não aconteceu, como também os israelenses atacaram outros e mataram muitos comandantes do Hezbollah no Líbano. Eles realizaram aqueles terríveis ataques de pagers contra muitos civis no Líbano e assassinaram Hassan Nasrallah, o líder do Hezbollah, assim como um comandante de alto escalão do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica.
Depois disso, o Irã começou a retaliar novamente. Realizamos aquele ataque com mísseis, e novamente os israelenses atacaram o Irã. Isso cruzou uma linha vermelha terrível. Agora, depois do ataque que os israelenses levaram a cabo contra Teerã, deixou de ser apenas sobre Gaza. Agora, trata-se de Gaza e do Irã. Neste momento, existem dois pontos importantes: precisamos parar os ataques em Gaza e no Líbano, mas também precisamos redesenhar o equilíbrio de poder nesta região. E o Irã precisa defender a sua integridade, a sua segurança.
Por isso, agora não se trata apenas de um ataque para forçar o cessar-fogo. Um cessar-fogo não vai mais impedir qualquer retaliação do Irã. O cessar-fogo é bom e é uma necessidade, é uma obrigação. Mas o que o Irã considera neste momento é que precisa responder.
Em primeiro lugar, se o cessar-fogo não acontecer, o Irã precisa forçar os israelenses a parar com os ataques. Vimos durante mais de um ano, que a única coisa que eles entendem é um comando enérgico. Se não houver força, de forma democrática ou pela diplomacia, nada disso são formas que funcionem com o regime israelense para pararem seus massacres, sua limpeza étnica e os ataques genocidas que estão levando a cabo em Gaza e no Líbano. O Irã precisa responder de forma massiva e contundente, primeiro para parar a guerra em Gaza, e segundo para proteger a nossa segurança e integridade, e para retaliar esta violação da nossa integridade que aconteceu por parte dos israelenses.
A retaliação ainda não aconteceu, talvez até lá, o cessar-fogo aconteça. Caso isso aconteça, como eu disse, não vai impedir uma retaliação de nossa parte. Mas poderia reduzir a escala e a dimensão do ataque por parte do lado iraniano. Mesmo assim, o Irã vê estas operações como algo para apoiar os palestinos a pôr fim a esta guerra. E nós percebemos que isto não pode acontecer confiando nas Nações Unidas, ou no seu Conselho de Segurança, ou tendo uma negociação com os ocidentais, com os estadunidenses. Essa forma não está funcionando. Nós já vivenciamos isso. Tampouco há esperança na próxima administração estadunidense, por exemplo, nem nos europeus, nem no Conselho de Segurança dos EUA. A única coisa que pode resolver isso é ter uma linguagem forte com eles.
De acordo com funcionários do governo iraniano, esta terceira retaliação vinda do Irã será mais forte. Alguns meios de comunicação ocidentais especularam que os ataques poderiam ter ocorrido antes das eleições presidenciais dos EUA, o que não aconteceu. O que devemos esperar da próxima retaliação do Irã?
Os rumores e os relatos que aparecem na mídia, especialmente na mídia ocidental, dizem que pode haver alguns ataques de outros países da região, como o Iraque, por exemplo, ou Síria ou Líbano. Não estou dizendo que seja verdade. Não tenho informações sobre isso. Mas é provável. O Irã precisa enviar uma mensagem forte ao regime israelense em resposta ao que fez. E essa resposta precisa ser uma punição. Não apenas uma mensagem. Precisa ser uma punição forte. Há uma diferença entre a primeira e a segunda operação de ataque com mísseis que fizemos. O primeiro foi apenas um sinal de que podemos passar pelos diferentes sistemas dos israelenses e dos estadunidenses, e demais aliados. O segundo visou atingir alguns alvos, para causar algum impacto nos terrenos das terras ocupadas. Foi muito diferente em termos de escala. Acredito que o terceiro seja ainda maior que os dois anteriores. Isto significa que precisará ter alguns impactos, fortes impactos, especialmente em termos de instalações ou infra-estruturas, não necessariamente de pessoas – especialmente se forem os chamados civis–. Essa é a minha expectativa.
Eles precisam sentir que, caso esta troca de ataques continue, se transformará numa guerra existencial para os israelenses. Eles precisam compreender esta resposta que o Irã vai enviar. E ela precisa ser forte. Não posso dizer com certeza de que tipo será, mas penso que há muitas opções no terreno, em cima da mesa. Porque o Irã tem muitas capacidades ofensivas que ainda não foram reveladas. Portanto, os tipos de mísseis, ou os drones ou outras armas que possuímos seriam usados, creio, até certo ponto, no próximo ataque. E, de acordo com as declarações das autoridades, será uma grande surpresa, tanto para os estadunidenses como para os israelenses.
Outdoor em Teerã denunciando o financiamento armamentístico de Israel por parte dos EUA. Na imagem, um militar israelense é armado e vestido por políticos estadunidenses. / Mauro Ramos
O que o Irã espera para os próximos anos em relação aos EUA, considerando que Donald Trump foi o responsável, por exemplo, pelo assassinato do general Qasem Soleimani?
O assassinato do general Soleimani foi um grande erro. Podemos dizer que isso arruinou todas as possibilidades de melhoria dos laços entre os dois países. Mas, independentemente disso, o principal problema é a abordagem errada que os estadunidenses ainda adotam. A atitude do excepcionalismo estadunidense e a ideia de que ainda são uma superpotência – que não são mais -, é algo que destrói qualquer comunicação positiva entre os dois países.
O Irã é um país em crescimento e está se tornando mais poderoso, assim como muitos outros países: Brasil, China, Rússia, África do Sul, Índia. Muitos outros países estão ganhando uma certa importância no mundo. Mas os estadunidenses, e também os europeus ocidentais, não querem aceitar que o mundo mudou. Eles ainda resistem a acreditar nisso. Eles ainda resistem ao fato de o mundo ter mudado e de o poder ter passado da Guerra Fria, do mundo bipolar e, logo, do mundo unipolar, para muitos lugares. Já não funciona como no passado. Portanto, os estadunidenses não são os governantes do mundo. Eles não são mais a superpotência. Mas eles ainda mantêm os velhos hábitos. E eles querem falar com o Irã a partir de uma posição mais alta. O Irã não aceita isso.
O Irã é hoje um ator mundial, global, e uma potência regional, e ganhou impulso nesta região. Portanto, não é possível trabalhar nesta região sem a participação ou envolvimento do Irã. Com um país com o Irã você não pode trabalhar assim. O Irã de 2024 não é o Irã dos anos 1970, onde o Sha [Mohammad Reza Pahlavi, último monarca do Irã] governava – e era na verdade um governo fantoche dos EUA.
Uma vez que existe essa mentalidade errada entre os estadunidenses, não há muitas chances de melhorar os laços. A única maneira de melhorar esta relação será quando mudarem a sua atitude em relação ao Irã. Isso aconteceu nos primeiros anos do presidente Barack Obama. Ele chegou a enviar uma carta ao líder iraniano dizendo “não estamos mais procurando uma mudança de regime, aceitamos o direito iraniano à energia nuclear, às instalações nucleares pacíficas” entre outras coisas. E ele disse "queremos melhorar a nossa relação com o Irã". Foi a carta que Obama enviou ao líder supremo do Irã, [o aiatolá Ali Khamenei].
Se lembrarmos as eleições de 2009, uma agitação eclodiu no Irã. Assim que os EUA perceberam aquela agitação, mudaram tudo. Então, a mesma pessoa que apenas 2 ou 3 meses antes das eleições havia enviado aquela carta, mudou novamente de atitude. Foi um reset e, na verdade, mais uma vez, voltaram às políticas de mudança do governo no Irã, apoiaram os protestos e a agitação, e depois disso nos foram impostas novas sanções. Mais uma vez, a mesma velha história e o mesmo guia apareceram na mesa. Seguiram a mesma agenda e os resultados estão evidentes: foi muito inútil e destrutivo da abordagem positiva das políticas em relação ao Irã.
Se isto não for alterado, nenhuma mudança real acontecerá. Poderíamos ter algumas negociações, ter algo como o JCPOA [sigla em inglês de Plano de Ação Conjunto Abrangente] – o que duvido que continue a acontecer –, mas mesmo que isso aconteça, seria provavelmente algo provisório, muito curto, tal como na administração Obama. Ele próprio assinou o JCPOA, e foi uma iniciativa sua, mas não o implementou completamente. O primeiro assassino do JCPOA foi o próprio Obama, e não o presidente Trump. Ele não removeu as sanções, na verdade não cumpriu os comentários e compromissos que haviam assumido no acordo. Portanto, mesmo que isso aconteça novamente, não há motivos positivos para uma maior melhoria das relações.