Haitianos apontam saídas para crise e se posicionam contra mais uma ocupação militar estrangeira
Há duas semanas o Haiti vive um contexto de crise aguda que derrubou o primeiro-ministro do país, Ariel Henry, gerou uma onda de violência que obrigou milhares de pessoas a deixarem suas casas e preocupa a comunidade internacional. A saída acordada por atores internacionais é o envio de mais forças de segurança, sejam soldados ou policiais, apressando o cumprimento de decisão do Conselho de Segurança da ONU que foi tomada em outubro passado a pedido do próprio Henry, com apoio dos Estados Unidos.
Apoiar a nova missão militar virou exigência para quem quiser se tornar um dos sete integrantes do Conselho Presidencial Provisório. O órgão proposto pela Comunidade do Caribe (Caricom) deve assumir o poder em breve e, em tese, faria uma mediação entre diversos grupos haitianos.
Até agora a missão ainda não tem muitas definições – não se sabe quem mandará os soldados, com quais recursos e quais suas obrigações e deveres. A única definição é que será voltada exclusivamente à segurança, fórmula adotada em outros momentos da história do Haiti que, segundo pesquisadores, teria deixado resultados catastróficos para o país.
Os grupos políticos haitianos, muitos divididos quanto a essa exigência, tiveram apenas 48h para decidir se estavam de acordo e indicar os nomes dos seus representantes. Muitos deles têm acusado essa de ser a mais nova chantagem política internacional.
Vale lembrar que Henry, visto como ilegítimo por boa parte da sociedade, foi nomeado por Jovenel Moïse, ex-presidente que já estava com seu mandato terminado e continuou no poder até o dia 7 de julho de 2021. Nesta data, Moïse foi assassinado, justamente três dias após a nomeação de Henry como primeiro-ministro, em um crime até hoje não esclarecido, com vários indícios de obstrução da justiça e sem ter todos seus possíveis mandantes investigados. Henry também tem graves denúncias contra ele de ter fortes ligações com diversos desses grupos armados.
A sociedade civil do Haiti já havia formulado em 2021 um conjunto de propostas não-violentas para viabilizar a transição política no país, presentes no Acordo de Montana.
Neste contexto, o Brasil de Fato ouviu atores políticos e intelectuais do país sobre o que fazer para resolver a crise atual.
Jacques Adler Jean Pierre / Arquivo pessoal
Jacques Adler Jean Pierre, membro do partido Pitit Desalin (Filhos de Dessalines) que abandonou o acordo por discordar da exigência de que todos membros devam aceitar a missão estrangeira:
"Hoje, mesmo se aceitássemos uma missão aqui, nós que deveríamos decidir qual tipo de missão tem a ver com a gente. Depois de muitas missões, a situação política, social, etc, se complicou e elas não trouxeram solução de verdade."
"Não podemos dizer que o país não mereça ajuda, mas acreditamos que seja importante que os haitianos estejam unidos e refletindo sobre qual tipo de missão queremos, de qual país viriam [as tropas] e que tipo de ajuda […]. Temos que ver com atenção quem é amigo de verdade, quem é mais sincero entre os amigos, e quem tem vontade de ajudar de verdade,[…] porque as missões dos Nações Unidas, em particular as trazidas pelos EUA, nunca trouxeram nenhuma solução para o país.[…] depois delas a situação sempre se complicou."
"Todos os haitianos deveriam se unir, e é isso que é mais difícil, se unir para dizer qual ajuda precisamos. Mesmo que você esteja com fome, correr pra pegar algo venenoso pra comer, só pra ficar de barriga cheia, não resolve."
"Por que a comunidade internacional, que não conseguiu dar respostas ao problema, agora nos dá apenas dois dias para tomar uma decisão? Você percebe que eles querem fazer a gente tomar uma decisão às pressas, para depois, graças à decisão rápida e de cabeça quente, eles terem o controle da situação."
"É quando eles têm o controle da situação que se sentem à vontade […] controlam a crise e recriam a crise, aí não é bom pra gente."
Camille Chalmers / Arquivo pessoal
Camille Chalmers é referência como economista e sociólogo, faz parte do PAPDA (Plateforme haïtienne de Plaidoyer pour un Développement Alternatif), que reagrupa diversos movimentos sociais e organizações civis, do partido de esquerda Partido Rasin Kan Pèp (Raiz do Campo Popular, em tradução livre) e da Alba Movimientos. Seu partido faz parte do Acordo do Montana.
"A demissão do primeiro-ministro Ariel Henry; estabelecimento de um governo de transição legítimo com uma série de acordos de governança; que cesse o fluxo internacional de armas em direção ao Haiti; rompimento com o controle dos narcotraficantes e com outros setores corruptos da elite haitiana que interferem no sistema político."
"Garantia que não haja nenhuma intervenção militar externa; investimento e fortalecimento imediato da capacidade das instituições haitianas, incluindo a Polícia Nacional do Haiti (PNH), para fazer frente às gangues."
Didier Dominique / Arquivo pessoal
Didier Dominique é professor universitário, houngan (pai de santo vodú), sindicalista e dirigente da organização Batay Ouvriye (Batalha Operária, em tradução livre), grupo especialmente ligado à luta dos trabalhadores urbanos e que não participou de nenhum dos acordos que terão representantes no Conselho Presidencial.
"Há duas respostas atualmente em jogo: uma para a classe dominante, quer dizer, para o Conselho Presidencial, para antigos parlamentares, ou ainda capitalistas, globalmente, imperialistas. Eles vão tentar sair da crise de forma organizada entre eles, se encontrarem à frente os grupos armados, os quais eles mesmos colocaram em funcionamento e agora abandonaram."
"Mas para nós, massa popular, trabalhadores, operários, camponeses, que estamos sendo desalojados, a insegurança é a primeira coisa a ser resolvida. Em seguida tem uma série de reivindicações de salário, sobre condições laborais, transporte, que a população deve encontrar os resultados que deseja."
"Esse é um segundo tipo de solução e é a massa popular organizada que pode permitir que isso aconteça, não o Conselho Presidencial, imperialista. Ao contrário, essas pessoas estão contra a população, elas que colocaram as gangues aí para, justamente, a população não conseguir se mobilizar. Então são duas soluções diferentes."
Michel Soukar / Arquivo pessoal
Michel Soukar é historiador e um dos jornalistas e intelectuais mais influentes do país
‘’Não sei se é sonho, mas gostaria que o povo, vendo quem o colocou na situação de hoje, haitianos e estrangeiros, identificasse um líder que deseja e seja de sua confiança. E que de uma maneira ou de outra o impusessem, formando uma massa crítica para apoiá-lo, organizando-se e controlando-o. […] Além disso, na cena internacional a única pessoa em que tenho confiança é Lula […] ele gostaria de fazer alguma coisa por esse país, e eu adoraria que fizéssemos um retângulo: Haiti, Cuba, Colômbia e Brasil. Uma cooperação Suil-Sul, embora existam países no Sul Global que não estão nessa proposta."
"A primeira coisa é cuidar da segurança, e para isso e todo o resto você vai precisar dos jovens, que são a fundação, num projeto que coloque a juventude como agente no projeto de nação. Pela primeira vez na história do Haiti teríamos uma juventude que criaria o Estado em fundação com a nação, e isso traria um sentimento de que tudo isso é dela."
"Construir uma nação é construir algo que todos reconheçam como seu. Ao contrário de 2004 [ano do golpe que derrubou o então presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide], os EUA não são os os únicos que cantam de galo."
Neno Garbers, mora no Haiti desde 2012, onde atua como pesquisador, editor, jornalista / correspondente e mediador de comunicação não-violenta pela organização Transfòmatis