Fim do trânsito do gás russo pela Ucrânia: entenda o que está em jogo
O acordo que permite que o gás russo atravesse o território ucraniano para ser distribuído para a Europa termina no fim do ano. Se não for renovado, isso pode prejudicar o fornecimento de gás para a União Europeia e para a própria Ucrânia.
Atualmente, após as sanções ocidentais, este gasoduto é praticamente o único que permite que o combustível russo chegue aos países da UE. O acordo de trânsito entre a Ucrânia e a petroleira russa Gazprom, do qual Kiev recebe receitas regulares, expira em 31 de dezembro.
O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, reforçou na última quinta-feira (19) que a Ucrânia não permitirá mais o trânsito de gás russo através do seu território. A afirmação aconteceu após uma reunião com líderes da União Europeia em Bruxelas na última quinta-feira (20).
Segundo ele, a proibição aplica-se a qualquer fluxo de gás "da Rússia", a fim de evitar o risco de venda de gás russo à Europa sob o disfarce de ser gás do Azerbaijão.
"Não permitiremos que ganhem bilhões adicionais com nosso sangue. E qualquer país do mundo que consiga obter algo barato da Rússia acabará se tornando dependente da Rússia – não importa se isso acontecerá em um mês ou em um ano. É a sua política", disse Zelensky.
Moscou afirmou diversas vezes anteriormente que não é contra a renovação do acordo. No entanto, na última quinta-feira (19), durante a coletiva de imprensa de fim de ano, o presidente russo, Vladimir Putin, confirmou que não haverá um novo contrato para o trânsito de gás russo através do território da Ucrânia para substituir o que expira em dezembro de 2024.
"A Ucrânia recusou-se a prorrogar o contrato, o contrato de trânsito. Esse contrato não vai acontecer, já está tudo claro. Bem, isso significa que, ok, vamos sobreviver, a Gazprom vai sobreviver a isto", disse ele.
De acordo com o líder russo, foi o lado ucraniano quem iniciou a rejeição a um novo acordo. "Não fomos nós que recusamos, foi a Ucrânia quem recusou", destacou.
Vladimir Putin observou que a Ucrânia ganha anualmente cerca de US$ 700 a US$ 800 milhões (entre R$ 4,2 bi e R$ 4,8 bi) com o trânsito do gás russo. "Agora surgem questões sobre o que fazer com ele. Mas estes não são os nossos problemas, foi a Ucrânia que cortou o fornecimento do nosso gás aos consumidores europeus", completou.
A União Europeia ainda é muito dependente do gás russo. Mesmo com os severos cortes feitos após o início da guerra da Ucrânia, cerca de um quinto do gás usado na Europa ainda vem da Rússia.
Atualmente, o trânsito do gás russo através do sistema de transporte de gás da Ucrânia é realizado no âmbito de um acordo de trânsito, que foi assinado no final de dezembro de 2019 pela empresa russa Gazprom e pela ucraniana Naftogaz. A empresa ucraniana atua como organizadora de trânsito e assume os riscos correspondentes.
De acordo com os termos do contrato, a Gazprom deveria bombear 65 bilhões de metros cúbicos para a Europa (UE e Moldávia) através do território da Ucrânia em 2020 e, a partir de 2021, 40 bilhões de metros cúbicos anualmente. O acerto também previa que a Gazprom deve pagar cerca de US$ 1,25 bilhões (R$ 7,6 bi) por ano pelo trânsito.
Em maio de 2022, a Ucrânia proibiu o fluxo de gás através de um dos gasodutos que levava o gás para a região de Lugansk, anexada pela Rússia durante a guerra. Como resultado, o volume diário de gás russo bombeado através do sistema de transporte de gás ucraniano caiu em mais da metade.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o analista-chefe do Fundo Nacional de Segurança Energética da Rússia, Igor Ushkov, explicou que o trânsito de gás da Rússia para a Europa diminuiu de 40 para 15 bilhões de metros cúbicos por ano.
"O valor do fornecimento de gás da Gazprom para a Europa pelo trânsito ucraniano e pelo fluxo turco – que também é de cerca de 15 bilhões de metros cúbicos por ano – foi de cerca de 28,5 bilhões de metros cúbicos e agora em 2024, o fornecimento diário é sempre quase de carga máxima e a Gazprom forneceu uma faixa de 30-33 bilhões de metro cúbicos de gás", disse.
Resistência dentro da UE
Por outro lado, existe uma resistência dentro do bloco europeu, que não deseja que o acordo entre Rússia e Ucrânia seja suspenso. Em particular, países como Hungria e Eslováquia afirmam que o fim do acordo poderia complicar o fornecimento de gás e elevar ainda mais os preços para os consumidores europeus.
O principal comprador de gás da Eslováquia, a SPP, alertou que a perda de fornecimento custaria 150 milhões de euros adicionais (quase R$ 1 bi). De acordo com o primeiro-ministro eslovaco, Robert Fico, a manutenção do trânsito de gás não é apenas uma questão bilateral para os vizinhos da Ucrânia, mas para toda a UE.
O analista Igor Ushkov destaca que "a interrupção do trânsito do gás pela Ucrânia não é vantajosa para ninguém do triângulo Rússia-Ucrânia-Europa".
"Se os europeus não receberem pela Ucrânia os 15 bilhões de metros cúbicos, é evidente que eles vão ter um déficit e um aumento de preços, sobretudo agora em janeiro, em meio à temporada de aquecimento, nesse período a gente poderá ver um aumento de preços em 200, 300 ou até 400 dólares por mil metros cúbicos, dependendo de como estará o tempo, porque a temperatura influencia no diário consumo de energia", afirmou.
O corte do trânsito do gás russo impõe sérios riscos de abastecimento para a Ucrânia. Isso porque o gás abastece várias cidades do leste ucraniano que ficam na rota do gasoduto. Quando o gás chega na parte ocidental do país, onde possui produção própria, a Ucrânia repõe o combustível utilizado antes de distribuir para os vizinhos europeus.
"Durante o trânsito eles pegam o gás para as regiões onde é necessário, e depois, na parte ocidental do país, onde existe produção, eles repõem o volume que foi retirado ao longo do gasoduto, então acaba saindo o mesmo que entrou, mas não é o mesmo gás. Se não houver esse trânsito, a parte ocidental do país terá que fornecer para o leste e para o centro da Ucrânia, para todos os territórios esse sistema nunca funcionou assim, sempre aconteceu do leste para o oeste e nunca ao contrário, e no meio da temporada de aquecimento, reverter isso é um processo muito arriscado", explicou o analista.
Por isso, de acordo com Igor Ushkov, o objetivo fundamental da Ucrânia não é interromper o gás russo, mas eliminar a petroleira russa Gazprom das negociações, para que estes acertos sejam feitas exclusivamente com as empresas europeias, "para mudar os pontos de entrega de gás para a fronteira russa-ucraniana". "Desta forma a Ucrânia quer restringir o contato aos europeus, e, em seguida, poderá impor condições. No sentido de 'se vocês quiserem preservar o trânsito, forneçam um apoio financeiro e militar adicional, e nos aceitem na UE'", acrescentou.
Mesmo com os riscos econômicos do corte do trânsito energético da Rússia via Ucrânia, são os interesses geopolíticos que buscam minar a participação da Rússia no mercado europeu. Interesses que vêm, principalmente, dos EUA, que fazem lobby para impulsionar a exportação do seu gás natural liquefeito para a União Europeia.
"Nesse plano, a recusa do fornecimento de gás pela Ucrânia tem esse caráter geopolítico, porque os únicos que estão interessados nisso são os EUA. Há muito tempo eles estão promovendo o seu gás natural liquefeito para o mercado europeu. Os EUA querem eliminar o concorrente russo do mercado europeu há muito tempo. Eles vêm declarando há bastante tempo que a Europa não precisa do gás "incorreto" russo, que precisa comprar o gás natural liquefeito americano, intitulado "moléculas da liberdade", o que repetidamente declarou o ministério da energia dos EUA, ainda antes de 2022", completou.