STF julga se ação sobre vínculo empregatício em aplicativos definirá futuro de processos semelhantes
O Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar nesta sexta-feira (23) se uma ação entre uma motorista e a Uber deverá servir de baliza para todas as disputas judiciais em torno de vínculo empregatício de trabalhadores de apps no Brasil.
Os ministros têm até 1º de março para se posicionar, em plenário virtual, se o caso deve ter repercussão geral. Até o momento, o único voto foi do relator Edson Fachin, que se manifestou de forma favorável. Apenas depois a Corte vai se debruçar sobre o mérito da ação (RE 1.446.336), ou seja, definir se a relação de trabalho configura ou não vínculo empregatício.
Trabalhadores de aplicativos, pesquisadores e sindicalistas ouvidos pelo Brasil de Fato consideram perigoso que o caso tenha repercussão geral. Na prática, se isso ocorrer e o entendimento do Supremo for pela inexistência da relação de emprego, os motoristas e entregadores de app no país não conseguirão mais ganhar ações na Justiça do Trabalho.
Uma carta com a assinatura de cerca de 500 acadêmicos de 34 países que estudam o tema alerta que a concretização deste cenário afetaria "a luta por direitos de todos os trabalhadores de plataforma".
Neste caso, avaliam os pesquisadores, "uma vez que um contrato civil tenha sido assinado, os fatos não importarão e o Tribunal do Trabalho será impedido de observar a realidade".
A carta salienta ainda que esta tese "não apenas ofende a legislação brasileira, que estabelece que qualquer acordo contratual com o objetivo de evitar a aplicação das leis trabalhistas é nulo e sem efeito, mas também a recomendação 198 da Organização Internacional do Trabalho, que afirma que a relação de emprego deve ser verificada com base nos fatos".
Carina Trindade é motorista da Uber desde 2017 e trabalha seis noites por semana. Atualmente preside o Sindicato dos Motoristas de Transporte Privado Individual de Passageiros por Aplicativos do Rio Grande do Sul. Ela também integrou o Grupo de Trabalho entre trabalhadores, empresas e governo federal que, após muitas reuniões em 2023, não chegou a acordo nenhum sobre a regulamentação da profissão.
"As empresas bloqueiam motoristas sem dar chance que se defendam, determinam o valor das corridas, usam o algoritmo e gamificação para manter motoristas online", descreve Trindade. "Eu vejo este julgamento como muito delicado porque se, com repercussão geral, o STF decidir que não tem vínculo, a gente não vai poder cobrar as plataformas", ressalta.
Esta é a primeira vez que decisões sobre o trabalho em aplicativos serão tomadas por todo o colegiado do STF. Até o momento, elas aconteceram de forma monocrática (quando a determinação é feita por apenas um ministro) ou por turma (o que não inclui todo o plenário).
Em vários destes casos, o entendimento dos ministros – entre os quais Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Luiz Fux e Carmen Lúcia – beneficiou as plataformas.
"Espero muito que esse julgamento seja favorável aos trabalhadores, mas a gente sabe que, infelizmente, muitos ministros são contra o vínculo. É lamentável porque eles não ouviram os sindicatos, os trabalhadores. Somente as empresas", afirma Carina Trindade.
"Temerário"
O caso em questão é de uma motorista do Rio de Janeiro que processa a Uber. Ela ganhou na segunda e terceira instância do Tribunal do Trabalho. A empresa, então, recorreu ao STF.
A procuradora-geral da República Elizeta Maria de Paiva Ramos foi quem pediu que o caso tenha repercussão geral No documento, ela diz que 780 mil processos do tipo foram registrados na Justiça do Trabalho entre 2019 e 2023 e que uma padronização para lidar com os casos é necessária.
Já a servidora do Tribunal Regional do Trabalho e autora do livro Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de direitos dos motoristas da Uber, Ana Carolina Paes Leme, considera esta padronização "temerária".
"É muito perigoso fazer uma repercussão geral desse jeito, sobre um tema que não está maduro, baseado no processo individual de uma motorista e sem diálogo com a sociedade", afirma a pesquisadora, que defende a realização de audiências públicas.
"Hoje estima-se que são de cinco a seis milhões de pessoas trabalhando em aplicativos, entre motoristas e entregadores. Todos serão afetados", atesta Leme.
Ao Brasil de Fato, a Uber afirmou que "os motoristas parceiros não são empregados e nem prestam serviço à Uber, eles são profissionais independentes que contratam a tecnologia de intermediação de viagens oferecida pela empresa por meio do aplicativo". A empresa disse, ainda, que "não há subordinação na relação, pois a Uber não exerce controle sobre os motoristas, que escolhem quando e como usar a tecnologia da empresa".
A posição é bastante diferente da defendida pelo advogado da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Ricardo Quintas, durante sua sustentação oral para este julgamento. Em sua visão, ainda que o trabalho em questão seja mediado por um aplicativo, "cujo núcleo é o algoritmo", ele "continua sendo comandado pela empresa".
"Todo o processo é comandado por atividade humana que programa o algoritmo no interesse da empresa em extrair com eficiência a força de trabalho", resumiu. "A empresa é o patrão, o algoritmo é a programação que limita a liberdade do trabalho e, portanto, é um instrumento de subordinação", afirmou Quintas aos ministros do STF.
"A subordinação algorítmica é um disfarce da subordinação clássica em que o algoritmo, a plataforma e o aplicativo são meios que dão um ar tecnológico para o trabalho prestado, na tentativa de excluir completamente a responsabilidade do empregador pela extração do trabalho", sintetizou o advogado: "Não há nada de novo sobre o sol".