Proclamação da República foi movimento elitista e sem interesse em mudar o Brasil
A Proclamação da República, em 1889, consolidou um modelo político que manteve a participação popular completamente distante das decisões e era comandado por donos de terra, militares e empresários. No pensamento do sociólogo Florestan Fernandes, o novo arranjo de poder abriu espaço para a revolução burguesa no Brasil.
Embora outros estudos situem o surgimento da burguesia em momentos históricos distintos, Fernandes estabelece com critério uma análise que enxerga um período marcado por limitações a transformações sociais, essencial para moldar o capitalismo no Brasil.
No livro A Revolução Burguesa no Brasil, o sociólogo afirma que é difícil localizar o momento em que o poder da burguesia alcança um patamar irreversível na história. "A situação brasileira do fim do Império e do começo da República, por exemplo, contém somente os germes desse poder e dessa dominação", diz ele.
Esse contexto, segundo Florestan Fernandes, não representou um colapso da elite que concentrava o poder, "mas o início de uma transição que inaugurava, ainda sob a hegemonia da oligarquia, uma recomposição das estruturas do poder".
A socióloga Maria Orlanda Pinassi explica que Florestan Fernandes identificou no Brasil um modelo que se afastou de revoluções burguesas mais tradicionais, como a francesa – pautada na democracia, na ruptura com o sistema vigente e de caráter mais popular. Aqui a lógica era mais parecida com a dos modelos tardios da Alemanha e Itália, que também trouxeram pactos entre as elites.
Em território nacional, o surgimento da burguesia acompanhou um novo papel que o país passava a ocupar na economia mundial. Na transição do capitalismo competitivo para o monopolista, o Brasil se inseriu no mercado internacional de forma subalterna e dependente. Essa realidade impactou diretamente a construção de uma república que consolidou os interesses da elite já estabelecida.
"O que de fato aconteceu foi o que Florestan denominou de uma 'revolução institucional', ou seja, uma transição pelo alto, na verdade 'um eufemismo típico da falsa consciência burguesa ultraconservadora', temerosa de transformações radicais" afirma Pinassi.
As consequências desse processo, segundo ela, atravessaram e atravessam toda a história brasileira a partir do século 20 e são terreno fértil para o crescimento de pautas conservadoras e extremistas.
"Hoje, apesar de todas as tentativas vãs de soberania plena, progressismos democráticos e autonomia nacional, o país mais do que nunca mergulha nos mandos de uma burguesia agrário-extrativista transnacionalizada, associada externamente aos imperativos do sistema financeiro do grande capital. Internamente, a predominância dessa burguesia ancora no que há de mais obscuro na sociedade brasileira, representada por crimes de toda natureza, seja os cometidos diretamente pelo Estado, seja pelas milícias, facções, igrejas da prosperidade. Neste atoleiro civilizatório, a extrema direita encontra esterco fértil para crescer."
O baile do fim
Um acontecimento simbólico que marcou o fim da monarquia expressa bem esse cenário. O famoso Baile na Ilha Fiscal, festa de gala oferecida pela corte de Pedro 2º a autoridades chilenas, que reuniu autoridades e parte considerável da elite econômica da época.
A festa suntuosa aconteceu no dia 9 de novembro, menos de uma semana antes do golpe que derrubou a monarquia. Na lista de convidados havia simpatizantes da República, inclusive personagens que teriam papel importante no estabelecimento do novo regime. A antiga elite também se acomodou dentro dos processos da República e não deixou de ganhar com o novo regime.
Por outro lado, o povo seguia alienado de qualquer participação política, vitimado pela carestia, por doenças oriundas de um sanitarismo inexistente, pela falta de acesso à educação, trabalho e terra e pela repressão violenta de movimentos populares.
A professora da Faculdade de Educação da Unicamp, Fabiana de Cassia Rodrigues, ressalta a manipulação do governo que se criava para conter a participação popular, expressa, por exemplo, na falta de expansão do ensino e do direito à educação.
"Existia uma resistência à expansão da educação escolar e a qualquer pensamento crítico. Hoje [isso impacta] no fato de termos, por exemplo, um dos nossos grandes intelectuais pensadores, educadores como o Paulo Freire, vilipendiado pela extrema direita. Uma das coisas que ele defende o tempo todo é que precisamos pensar criticamente. Isso é impossível, não pode no Brasil e tem a ver com o impedimento da participação popular nos processos políticos."
Ela lembra que a Proclamação da República já continha em si o desejo de frear movimentos pela abolição da escravidão, um óbvio distanciamento entre o novo regime e as demandas populares da época.
"Sempre houve uma manipulação e uma condução de modo a conter, reprimir e fazer com que não haja espaço algum para as manifestações populares. A Proclamação da República é muito próxima à abolição da escravidão e tem um aspecto que é de evitar um 'mal maior'. É esse pânico das elites com relação ao que poderia vir das dessa mobilização, dessa maioria populacional negra."
Foi nesse período que o Brasil viveu as trágicas Revolta de Canudos, no sertão da Bahia, e a Guerra do Contestado, na fronteira entre Paraná e Santa Catarina. Os dois movimentos desafiavam o novo regime e foram contidos com perversidade bélica. Milhares de pessoas morreram.
A busca por direitos impulsionou greves, protestos por melhores condições de vida, motins e outras formas de manifestação contra a precariedade imposta a trabalhadores e trabalhadoras. Todas foram recebidas de maneira hostil, o que evidenciou a limitação proposital do projeto republicano e a falta de interesse de quem estava no poder
Nada de ilusões
Mesmo historiadores mais antigos destacam a ausência de ruptura do processo de Proclamação da República. Na simbólica obra História do Brasil de Pedro Calmon, escrita na entre as décadas de 1930 e 1950, o autor ressalta que o estabelecimento do novo regime não precisou gastar tempo, dinheiro e nem vidas.
A descrição de Calmon sobre quem compunha os grupos republicanos também dá pistas a respeito da formação elitista do movimento. Ele descreve os defensores de um novo regime como uma "coligação de dissidentes liberais, militares irritados, partidários da autoridade forte e positivistas inspirados por um programa de reformas".
O economista e professor da Universidade Federal de Santa Catarina, Nildo Ouriques, afirma que, apesar de Florestan Fernandes identificar na Proclamação da República o início da revolução burguesa no Brasil, já havia consolidação de uma burguesia em solo nacional, pautada principalmente na concentração e no poder sobre a terra.
"A propriedade da terra já estava colocada ali pelo tema da cana de açúcar, o ouro branco, muito importante no Haiti, no Brasil e em vários países. Então, já tínhamos ali uma burguesia inicialmente comercial, em princípio uma pequena burguesia financeira e sobretudo uma burguesia agrária assentada no poder da terra."
Segundo ele, os caminhos elitistas da República brasileira não devem ser vistos com surpresa.
"É preciso acabar com a ilusão de que a República é democrática. Vamos olhar para a França. Napoleão mandou 3 mil operários para fora e matou 5 mil. Botou a espada, como [os republicanos brasileiros] Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. Então, a ideia de que a República é democrática e vai atender a todos e todas não vai acontecer nunca. A República não é democrática, a República é burguesa."