Indígenas criam formas de adaptação à seca na Amazônia
Na aldeia Assunção, Terra Indígena autodemarcada pelo povo Kokama, os igarapés secos estão limitando a navegação nos afluentes da região. Em meio a mais uma estiagem severa que afeta os rios da bacia amazônica, as comunidades locais enfrentam dificuldades que se repetem pelo segundo ano consecutivo. Mas, desta vez, decidiram não esperar a ajuda que demora ou não vem. Elas estão se adaptando à urgência climática como podem.
Na margem esquerda do rio Solimões, fica o município de Alvarães (AM). A seca isolou suas 61 comunidades, de acordo com a Defesa Civil do Amazonas. Segundo os dados do Sistema Integrado de Informações sobre Desastres, 2.855 famílias foram afetadas pela estiagem. Maria Auxiliadora dos Santos é uma liderança de uma comunidade onde vivem 76 famílias. “Não está nada bom, mas a gente vai levando como pode”, admite.
A praia se alargou, criando dificuldades para entrar e sair da comunidade. A alimentação está difícil, seja no plantio, na pesca ou na caça. Mas o que mais tem atormentado a vida dos indígenas é o acesso à água potável. Na aldeia Assunção, como forma de adaptação à seca um poço artesiano foi perfurado do outro lado da comunidade, onde passa um pequeno igarapé. As famílias também aproveitam as chuvas para armazenar água em garrafas e galões. Maria Auxiliadora alerta que essa quantidade mal supre a necessidade de todos os comunitários.
A comunidade não tem energia eletrificada. A liderança já reivindicou que a aldeia receba pelo menos 1.000 metros de fios, o que daria para fazer a ligação na rede de energia da cidade com a TI. Isso faria com que a água chegasse em todas as torneiras de Assunção, deixando de depender da instável energia captada por placas solares.
“A gente já tem pedido para as autoridades, foi feito um documento, mas até agora ninguém ajudou a gente com esse fio. Hoje, com esse dia nublado, a água está muito fraca e não tem como pegar, porque a única fonte que nós temos é essa de água”, explica.
Os roçados perdidos prejudicaram a comunidade formada por agricultores, que não têm mais como utilizar o principal igarapé para trabalhar. Sem água, é impossível pensar em uma adaptação à seca para quem tem dificuldade até para colocar mandioca na água para fazer a farinha. Enquanto os rios não enchem, as famílias sobrevivem com o Bolsa Família. “Ficou difícil para quem vive de roça e trabalha para vender a farinha e comprar sua alimentação. A estiagem deu esse prejuízo para a gente que trabalha na agricultura”, afirma Maria.
Em todo o Amazonas, 200.131 mil famílias (ou 800.480 pessoas) estão sendo impactadas pela seca. O governo amazonense decretou estado de emergência em todos os 62 municípios.
Liliane Ribeiro, indígena do povo Miranha, mora na aldeia Tapiira e conta que a logística para chegar até a cidade ficou quase impossível. Nessa aldeia, os moradores estão armazenando água da chuva em garrafões e sobrevivendo de um poço para preparar os alimentos e tomar banho. “Não tem como se deslocar para os lagos devido à seca. A gente apara, faz as bicas em casa e armazena no galão de água”, detalha outra forma de adaptação à seca.
Na aldeia Bom Jesus, Andressandra Reis, indígena Kokama, também relata a falta de água e alimento. “O igarapé está muito seco mesmo, está pior que no ano passado. Quando chove, armazenamos a água”, diz. Quando os igarapés ao redor estão cheios, o trajeto até a cidade de Alvarães para fazer compras e revender produtos leva cerca de 25 minutos. Na seca, a viagem é de mais de uma hora.
Sem aula
Na TI Marajaí, a liderança do povo Mayuruna (Matsés), Charles Mayuruna, conta que a estiagem prejudicou os alunos e comunitários. A escola da aldeia chegou a paralisar as atividades por causa da falta d’água. Não havia coni preparar a merenda. No município de Alvarães, a liderança Mayuruna afirma que as aldeias indígenas Kanariá, Assunção, Marajaí, Jaquerê, Laranjal, Méria, Igarapé Grande, Mari Macedônia, Jurupari, Tapiira, Bom Jesus, Ponta da Castanha e Vila Alencar são as mais afetadas pela seca.
“Os poços artesianos tiveram uma baixa de nível e tivemos dificuldade de trazer essa água para os reservatórios da escola da própria comunidade. Essa seca do rio Solimões não está fácil, muitas das nossas crianças deixaram de ir para escola”, relata Charles Mayuruna.
Os muitos bancos de areia formados no leito do rio têm dificultado a locomoção dos comunitários da aldeia Marajaí para Alvarães. Sem esperar por uma ajuda oficial, os Mayuruna resolveram abrir uma trilha na mata, encurtando o trajeto até a cidade. “Os antigos da aldeia estão falando que ano que vem vai ser pior que este ano. Percebemos que nunca tinha ficado tão seco o nosso grande rio. Os barcos não conseguiram chegar e a alimentação ficou mais cara. Até os peixes desapareceram”, observa a liderança Mayuruna.
Saúde indígena precária
Emilson Saraiva da Cruz, técnico de saúde indígena no Polo Base Marajaí, na TI Marajaí, reforça que esta estiagem foi mais intensa que a de 2023, aumentando as dificuldades no transporte de pacientes. Ele explica que, quando não conseguem estabilizar o quadro de saúde na unidade local, precisam transferir os pacientes para Alvarães.
Só que como o rio Solimões está muito baixo, o motor das embarcações, conhecidas como “rabetas”, encalham com frequência nos bancos de areia, aumentando o risco de capotamento. “A dificuldade é imensa, essa estiagem colocou muitas barreiras para que possamos fazer o nosso trabalho em todas as comunidades. Têm essa dificuldade para chegar até as outras comunidades”, diz.
Essa situação é crítica para a atuação nas nove aldeias dos povos Tikuna, Kambeba, Kokama e Mayuruna, que são atendidas pelo Polo Base Marajaí. Atualmente, essas comunidades não recebem o suporte adequado de acompanhamento médico devido à seca extrema, que deixou o leito do rio intransitável.
Para atender as famílias afetadas, o governo do Amazonas diz ter instalado 41 purificadores de água e enviou 2.150 caixas d’água. Também foram enviadas 2.797 toneladas de alimentos, sendo 42 toneladas para Alvarães, e 202,1 toneladas de medicamentos e insumos para os municípios das regiões do Madeira, Juruá, Purus e Alto Solimões. Além disso, foram distribuídos 15,1 mil volumes de medicamentos e insumos para outras cidades.
Rios estão subindo
De acordo com Jussara Cury, superintendente do Serviço Geológico do Brasil (SGB) em Manaus, os rios da bacia do Amazonas, como o Solimões, estão passando por uma fase de estabilidade que representa um comportamento de diminuição da recessão, rio parado e pequenas elevações diárias. Para que o processo de recuperação da bacia inicie e a vazante se encerre, é necessário que as chuvas sejam mais uniformes e consistentes.
Na região sul, os rios Madeira, Purus e Juruá apresentam oscilações (subidas e descidas), pois as precipitações ainda estão abaixo do normal. “Para considerar o fim da seca, além dos níveis, é preciso observar a bacia do Amazonas como um todo”, afirma Cury.
O SGB dispõe de estações de monitoramento na bacia do Solimões no Amazonas. Cidades como Tabatinga, Fonte Boa, Itapéua e Manacapuru registraram na última semana subidas diárias. No caso de Tabatinga, a média diária é de 10 centímetros.
Impactos da crise climática
O geólogo e pesquisador Naziano Filizola, professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), lidera o projeto de ciência cidadã “Rios On Line”, que envolve o trabalho das populações amazônicas e da academia para acompanhar a situação dos rios da bacia Amazônica, além de suas relações em eventos hidrológicos extremos. A pesquisa quer também propor ações mitigadoras.
O objetivo é compartilhar conhecimentos com os ribeirinhos e indígenas que moram próximo aos rios. Das suas comunidades, eles mandam informações e fotografias dos rios para que os pesquisadores do projeto possam publicar e analisar essas imagens.
Já os pesquisadores do Rios On Line mandam, semanalmente, informações sobre a variabilidade dos rios. Eles visitam algumas comunidades, mostram as fotografias e discutem com os moradores formas de responder aos processos hidrológicos, isto é, de adaptação à seca.
Em visitas às comunidades de Alvarães, os pesquisadores da Ufam perceberam a forte preocupação dos indígenas e ribeirinhos com eventos climáticos extremos, principalmente porque muitos ficaram isolados e não recebem quase nada de assistência.
Filizola explica, em uma avaliação preliminar, que este ano a seca foi antecipada e concentrada nos rios da margem direita do Solimões e Amazonas. A Margem Direita do Amazonas (MDA) cobre as bacias de sete afluentes: Xingu, Tapajós, Madeira, Purus, Juruá, Jutaí e Javari
“Esses são rios onde foram identificadas fraquezas naturais para eventos extremos, como a seca. Por ser uma região extremamente afetada por queimadas e desmatamento, perda de cobertura vegetal e uma série de fatores, tudo isso junto acontecendo na margem direita do rio Amazonas gerou um quadro propício para uma seca extrema”, explica.
O geólogo afirma que o nível dos rios baixou tanto que eles não conseguiram transportar a quantidade de água necessária para manter o equilíbrio no curso principal, ou seja, nos rios Solimões e Amazonas, que também entraram em seu período de seca mais cedo do que o esperado. O Solimões/Amazonas, por ser um rio caudaloso e potente, gera uma influência hidráulica forte sobre seus tributários, como os rios Negro e Japurá.
“Cada rio, de certa forma, é uma entidade com um comportamento próprio. Alguns são mais calmos, outros mais nervosos. Em cada um deles a gente costuma ter um regime fluvial com algumas variantes”, explica Filizola.
O regime fluvial do rio Negro em Manaus, Novo Airão e São Gabriel da Cachoeira não será o mesmo em cada trecho, pois o rio reflete as contribuições de seus tributários e as características da cobertura vegetal, geologia e topografia. Quando ocorre desmatamento ou mudanças no solo, isso impacta os ciclos hidrológicos locais. Uma área muito desmatada torna-se mais vulnerável e o rio, dependendo de seu tipo de solo, pode ser assoreado parcial ou completamente, alterando seu curso.
Na Amazônia, há uma grande diversidade de rios: alguns são sinuosos, com muitas curvas, enquanto outros são mais lineares e menos suscetíveis a mudanças abruptas. Contudo, a região amazônica ainda é pouco conhecida em profundidade, devido às dificuldades de acesso e a barreiras políticas e ambientais. Por isso, o pesquisador afirma que a ciência muitas vezes trabalha de forma generalista, o que limita a precisão das informações.
“Para entender como cada rio reage e quais ações humanas podem ter um impacto menos agressivo sobre eles, é necessário conhecer as especificidades de cada bacia. Qualquer ação humana tem impacto no ambiente, e a chave está em compreender esses impactos para que a gente possa dizer que tipo de ações podem ser efetivamente constituídas e realizadas em uma determinada bacia, para que elas afetem menos os rios”, finaliza.