Enchentes em BH são consequências de decisões tomadas pelo município, dizem pesquisadores
Após meses de seca, a capital mineira está em estado de alerta devido às pancadas de chuva que atingem o município. Nos últimos dias, regiões sofreram com enchentes que, além de gerar transtornos para os moradores, provocaram a danificação de vias, deslizamentos de terras e desabamento de estruturas. Porém, na avaliação de especialistas, os impactos não são apenas fruto do fenômeno natural, mas da falta de preparo da cidade.
Marta Ribeiro dos Santos é uma trabalhadora autônoma de 56 anos. Ela vende produtos de beleza, eletrônicos e outros acessórios próximo à avenida Bernardo Vasconcelos, que fica na região Nordeste da capital mineira.
No último sábado (26), quando ela se preparava para retornar para casa, a chuva caiu repentinamente, alagando em poucos minutos toda a extensão da via, na altura do bairro Cachoeirinha.
Marta conta que o cenário foi de desespero. Enquanto via carros e motos tentando sair da área inundada, ela buscou guardar rapidamente os seus produtos. Porém, acabou perdendo alguns materiais, enquanto buscava se locomover pela calçada alagada.
“Eu saí de lá bem no início [da chuva] e, mesmo assim, a água chegava quase nos meus joelhos. Foi assustador. Perdi algumas ‘capinhas’ de celulares e outros produtos que não consegui carregar na pressa, mas, graças a Deus, cheguei bem em casa”, relembra.
Um balanço divulgado pela Defesa Civil Estadual na segunda-feira (28) indica que, em Minas Gerais, já são 47 desabrigados e 114 pessoas desalojadas em função do período chuvoso de 2024/2025, que começou no fim de setembro.
Segundo dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o mês de outubro deste ano foi o terceiro mais chuvoso da história de Belo Horizonte. O índice de precipitação em algumas áreas da cidade foi tão alto que superou, em apenas 30 dias, o volume de chuvas que o deserto do Saara registra em um ano.
O urbanista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Roberto Andrés explica que o cenário caótico enfrentado pela população nos dias de hoje é consequência de decisões tomadas há mais de um século, quando a cidade fez a opção de canalizar suas águas.
“A cidade não tem preparo para lidar com esse cenário porque foi construída em um paradigma de controle das águas. Canalizamos córregos, cursos d’água, ribeirões, etc. Isso faz com que as águas desses cursos corram de forma mais rápida, provocando as enchentes”, explica.
Emergência climática agrava a situação
A geógrafa e pesquisadora do Instituto Manuelzão, vinculado à UFMG, Carla Wstane argumenta que, com a intensificação do cenário de emergência climática, eventos extremos, como secas prolongadas ou fortes chuvas, se tornam cada vez mais recorrentes, tornando ainda mais crítica a situação da capital mineira.
“A inundação urbana é uma ocorrência tão antiga como a existência das cidades. No entanto, as margens dos rios nunca foram tão densamente ocupadas, eles nunca foram tão poluídos e o solo tão impermeável. Com o acelerado desenvolvimento das cidades, os rios urbanos passaram a inundar com maior frequência. A emergência climática só vai piorar as coisas”, avalia.
“A expansão da área urbana realizou-se sem um plano eficaz de controle das cheias, resultando em aumento das ocorrências das inundações, muitas das quais já provocam perdas materiais e de vida humanas. As águas transbordam do leito de escoamento, devido a falta de capacidade de transporte desses sistemas em épocas de grande precipitação, e invadem áreas ocupadas pela população”, continua.
Alternativas
Dessa forma, os especialistas avaliam que é preciso que as cidades tenham planejamentos emergenciais, com ações a curto prazo e planejamentos mais robustos, que reúnam um conjunto de medidas estruturais para a construção de municípios mais preparados para lidar com o atual momento.
“Precisamos fazer o esforço de desimpermeabilizar a cidade, aumentar a drenagem distribuída nos territórios, descanalizar os córregos e criar uma forma da água da chuva ser absorvida”, defende Roberto Andrés.
Para Carla, de forma imediata, o poder público deveria deslocar pessoas que estão em áreas de risco, como vem acontecendo com as famílias da região do Baixo Onça, área de recente ocupação de Belo Horizonte próxima ao Ribeirão do Onça, um dos mais importantes afluentes do Rio das Velhas.
Em meados deste ano, a Prefeitura de Belo Horizonte realocou da região cerca de 900 famílias, que, agora, não precisam mais conviver com o medo do período chuvoso.
“A longo prazo é trabalhar com educação, infraestrutura, plantio, captação de água das chuvas, drenagem e uma perspectiva de cidade que busque harmonia com os rios, que já estão ali desde antes da sua construção”, comenta a pesquisadora do Instituto Manuelzão.
Canalização
Carla Wstane ainda avalia que existe a ilusão de parte da população de que a canalização das águas representa o “desenvolvimento” dos territórios. Essa ideia é acentuada pela falta de saneamento básico adequado em algumas áreas da cidade.
“Porém, geralmente, a canalização vem acompanhada de forte permeabilização do solo, intensificação do trânsito local, aumento da poluição, aumento do perigo de tráfego e provoca um efeito conhecido por ‘canhão hidráulico’, quando há um volume de água superior a condição natural para um mesmo espaço de tempo”, explica.
“Vê-se uma disputa de interesses diversos e contraditórios. Se por um lado as ineficiências do poder público na implementação histórica de obras de infraestrutura deixaram cursos d’água ainda em condições ‘naturais’, existindo a possibilidade de tratá-los por meio de concepções ambientais, por outro, a população reivindica a canalização por não acreditar no eficiente saneamento do lugar”, continua.
Diante desse cenário, para Roberto Andrés, novamente, a experiência do Ribeirão Onça merece atenção, por ser positiva.
“Estão propondo a construção de um parque ciliar, que será, ao mesmo tempo, um parque de drenagem e um espaço de lazer”, relata.
Impacto tem raça e cor
O professor da UFMG também destaca que, ainda que a chuva possa atingir todas as regiões da cidade, independente da classe social de quem mora nelas, a população que mais sofre com o despreparo é a mais pobre, que também é majoritariamente negra.
“A população mais atingida é aquela que foi construir suas casas nas beiras dos rios, nas encostas íngremes. Mesmo quando a chuva atinge regiões mais ricas da cidade, são pessoas e estabelecimentos comerciais que têm muito mais condições de se recompor. Inclusive, o poder público costuma ser mais rápido nessas regiões do que nas mais necessitadas”, avalia.
Decisões polêmicas
Em 2021, a Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH) vetou um empréstimo de R$ 907 milhões à prefeitura, que seria utilizado para obras de prevenção às enchentes. Na época, o então vereador e atual deputado federal bolsonarista Nikolas Ferreira (PL) comemorou a decisão.
No ano seguinte, a CMBH tomou outra decisão polêmica, ao rejeitar um projeto de lei (PL) que tinha o objetivo de minimizar os impactos do aquecimento global, instituindo a Política Municipal de Enfrentamento das Mudanças Climáticas e de Melhoria da Qualidade do Ar.
Conferência municipal contra a emergência climática
Entre os dias 29 e 30 de novembro, Belo Horizonte realizará a Conferência Municipal do Meio Ambiente, como etapa preparatória para a 5ª Conferência Nacional do Meio Ambiente (CNMA), que acontecerá em 2025.
Um dos objetivos do encontro é elaborar propostas para o enfrentamento à emergência climática.
As sugestões deverão ter relação com cinco eixos: mitigação, que trata sobre a redução da emissão de gases de efeito estufa; adaptação, que está relacionado com a prevenção de riscos e a redução de danos; justiça climática, que aponta para a superação das desigualdades; transformação ecológica, que aborda sobre a descarbonização da economia e; educação ambiental, que trata sobre participação e controle social.
A participação é gratuita e aberta ao público, mediante inscrição a ser realizada neste link.
Fonte: BdF Minas Gerais