Corrida para proteger a Foz do Amazonas se acirra
Entre um mergulho e outro, seguidos de inúmeras análises de laboratório, a corrida de Ronaldo Francini Filho, professor da Universidade de São Paulo (USP), é contra o tempo. Com um grupo de alunos e pesquisadores, o biólogo tenta entender como funcionam os recifes escondidos no Oceano Atlântico, sob influência das águas escuras do rio Amazonas.
O momento é dramático. A água dos oceanos aquece num ritmo nunca antes registrado, corais atravessam uma onda de branqueamento em massa. A crise é causada justamente pelo aumento da temperatura média do planeta, impulsionado principalmente pela queima de combustíveis fósseis.
No caso do Grande Sistema de Recifes da Amazônia, como é chamado pela ciência, há outro risco iminente: a exploração de petróleo. Essa complexa estrutura marinha se estende por 9.500 quilômetros quadrados ao longo da costa amazônica, do Maranhão até a Guiana, e chega a 220 metros de profundidade.
A cerca de 40 quilômetros de sua parte mais setentrional, está o bloco FZA-M-59, de cujo fundo a Petrobras aguarda para extrair o combustível fóssil. O pedido de licença, negado anteriormente, segue em análise pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama).
Enquanto isso, em outro setor do mesmo ministério, Francini Filho é um dos cientistas que reúnem argumentos para proteger a região, antes que a indústria petroleira se instale: "A discussão chegou num ponto em que estão tentando esconder um recife da metade do tamanho da Grande Barreira de Corais da Austrália. Temos que discutir isso. Aquele recife pode não ser tão bonito esteticamente falando, mas pode ser que eles sejam os últimos trampolins para espécies que transitam entre Brasil e Caribe", afirma o biólogo.
Mistério sob águas profundas
No Centro de Biologia Marinha da USP, em São Sebastião, a equipe junta as poucas peças conhecidas para entender o papel da biodiversidade do recife e os possíveis impactos da chegada da indústria petroleira. Coletar dados na região da bacia marítima da Foz do Amazonas não é trivial, já que ali estão as correntes marinhas tropicais mais fortes do globo.
"A gente precisaria ter um esforço concentrado de coleta de dados, pelo menos para saber o estrago que a gente vai causar caso a exploração vá adiante", diz Francini Filho. De todo o mistério que envolve o recife amazônico, um papel é conhecido: ele é um dos últimos refúgios para o pargo, peixe de grande importância comercial que já sumiu em outros pontos do país.
Hudson Pinheiro, um dos poucos cientistas brasileiros preparados para fazer mergulho em ambiente profundo, lembra ainda a presença do maior manguezal do mundo naquele trecho da costa. Ele recebe a influência da carga de nutrientes que chega pelo rio Amazonas depois de cortar a maior floresta tropical do planeta.
"Existe uma coisa muito singular ali na região, e a gente está começando agora só a 'arranhar' o conhecimento. A gente sabe que existe uma conectividade, e algumas espécies que estão ali ocorrem em outros lugares, como no Caribe", afirma Pinheiro, pesquisador da USP, membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza da Fundação Grupo Boticário e da Academia de Ciências da Califórnia.
O recife amazônico é classificado como mesofótico, o que significa que há pouca luz disponível para os organismos que vivem nele, até por se encontrar entre 30 e 220 metros de profundidade. A estrutura abriga esponjas e outros que conseguem realizar fotossíntese sob baixa luminosidade, como algas calcárias e alguns corais.
Numa expedição a bordo de um submersível, em 2018, Francini Filho avistou esponjas-barril gigantes, de até dois metros de altura. Elas funcionam como bombas de filtração de água, absorvendo a matéria orgânica dissolvida que vem carregada pelo rio.
Mar de incertezas
Em Belém, no Pará, pesquisadores do Museu Goeldi defendem a criação do Instituto da Foz do Amazonas. A rede de pesquisadores teria a missão de avançar no conhecimento científico: seja para conservação, seja para exploração.
Amilcar Mendes, geólogo e pesquisador da instituição pública, diz que os indícios de que havia petróleo na bacia marítima da Foz do Amazonas vêm dos anos de 1970. Ele se lembra das discussões na década seguinte, quando ainda era estudante, em torno da falta de tecnologia para exploração do combustível em águas profundas.
"Não é para preservar por preservar, porque é a Amazônia, e também não é para sair explorando. A região tem potencialidades [para exploração de petróleo], mas tem limitações que precisam ser levadas em consideração."
Entre essas barreiras está a difícil navegação: segundo Mendes, os bancos de areia e lama mudam tanto de lugar que chegam a "tirar um pouco o moral dos equipamentos geofísicos de navegação".
Com o "sim" ou "não" para o pedido da Petrobras prestes a sair, o geólogo acredita que a pergunta mais urgente a ser respondida é a composição do recife. "Além disso, tudo ali é mais complexo. É uma zona muito sensível ao derramamento de óleo, com o manguezal e uma bacia pesqueira importante para os estados amazônicos."
Maria Emília da Cruz Sales, também pesquisadora no Museu Goeldi, ressalva que a discussão sobre este futuro e a repartição de benefícios tem que incluir os povos tradicionais e indígenas: "Nós queremos também que a tomada de decisão seja feita com base nas melhores evidências científicas. Com os dados que existem hoje, sabemos que são necessários mais estudos."
Questão do petróleo sempre presente
Hudson Pinheiro ajudou a elaborar uma proposta para criar uma unidade de conservação numa zona de tantos interesses: "Nesta região tão rica e biodiversa, faz todo o sentido a gente cuidar da foz do rio Amazonas, da mesma forma que a gente se esforça para cuidar da Floresta Amazónica", justifica.
José Pedro de Oliveira Costa, professor na USP e coordenador do programa Amazônia em Transformação, já foi secretário de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, e trabalha há décadas com áreas protegidas. Ele narra que, em 2017, já havia uma discussão para proteger a região da Foz do Amazonas, mas foi adiada.
"Houve uma resistência muito grande. O petróleo sempre foi uma questão lá. E quando se fala de proteção de área marítima também se fala da Marinha, do Ministério da Pesca e agora, cada vez, mais do Ministério de Minas e Energia."
Para o debate sobre a unidade de conservação avançar é preciso apoio de pesquisas e de recursos, adianta Costa. O dinheiro, presume, poderia vir de programas como o Fundo Amazônia, mantido por doadores, que conta atualmente com mais de R$ 4 bilhões em caixa.
Questionado pela DW, o órgão do ministério responsável pela criação e gestão de áreas protegidas, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), não se manifestou até o encerramento desta reportagem.