Carnaval tradicional do Maranhão resiste em meio a atrações milionárias
São Luís (MA) recebeu, no período do Carnaval, cerca de 2 milhões de foliões. Assim como em outras cidades com tradição carnavalesca, a capital maranhense está imersa na cultura de shows milionários. Governo do estado e prefeitura municipal, inclusive, protagonizaram uma disputa sobre quem contrataria os maiores artistas, com nomes que foram de Wesley Safadão até Alok.
Apesar disso, as brincadeiras, danças e festas populares coloriram as ruas, em tom de resistência. A festa aconteceu especialmente nas estreitas ruas de comunidades da periferia, como o Bairro da Liberdade, maior quilombo urbano da América Latina, e o bairro Madre Deus, considerado um dos mais festeiros da capital.
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Bicho Terra é considerado o bloco tradicional mais famoso e popular do estado / Reprodução
Foi no bairro Madre Deus que surgiu o Bloco Bicho Terra, há 35 anos, hoje considerado o mais famoso do carnaval popular maranhense. As coloridas fantasias são feitas artesanalmente, inspiradas em elementos da natureza como a mata, o homem e a água. Neste ano, apresentou como novidade o Bicho Buriti, uma das frutas mais conhecidas e consumidas na Amazônia.
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Atualmente, já são personagens oficiais no bloco o Bicho da Mata (verde), que deu origem ao grupo, seguido do Bicho Primata (vermelho), Bicho Felino (laranja), Bicho d'Água (azul), Bicho Ovo (amarelo e branco), Bicho Juçara (roxo), Bicho Primavera (rosa), Bicho Maranhanguara (preto), Bicho Louva-a-Deus (verde-cana), Bicho Mamãe (todas as cores), Bicho Luz (amarelo, laranja e vermelho) e, agora, o Bicho Buriti (verde, laranja e palha).
O tambor de crioula não tem época pré-determinada e também ocupa as ruas no carnaval / Governo do MA
Considerado patrimônio imaterial do Brasil, o Tambor de Crioula é uma das manifestações populares maranhenses que se apresenta em qualquer período do ano, e no carnaval enche as ruas de fogo, tambores, dança e cores.
Segundo maior estado do Nordeste em extensão territorial, o Maranhão tem grande diversidade cultural, e a depender da região, as influências e manifestações são diferentes, incluindo os blocos de rua, com a tradicional figura folclórica do fofão, concursos e bailes de fantasia, além da presença das marchinhas.
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Se de um lado o Bicho Terra é o bloco mais famoso, de outro lado, o personagem que historicamente reina no carnaval tradicional maranhense é o Fofão, colorido, de roupas largas e máscara peculiar, que, de tão espalhafatoso, chega a assustar.
No entanto, o Fofão tem sofrido um apagamento ao longo dos anos, marcado especialmente pela criminalização do personagem, figura carimbada especialmente nas periferias.
A juventude tem papel fundamental na preservação das brincadeiras e manifestações populares / Arquivo Pessoal
Wanessa Kelly, jovem que atua nas áreas da cultura popular maranhense como coreira, poetisa e produtora cultural, é moradora da periferia de Ribamar Fiquene. Ela explica que quando a comunidade quer brincar de fofão hoje, geralmente se desloca até as festas do centro de São Luís, distante cerca de 35 quilômetros.
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"Estamos perdendo muito a tradição do fofão por causa da criminalização dessa brincadeira, principalmente nas periferias. Quando a gente quer usar fofão, usamos mais no centro, porque estamos mais respaldados pela polícia. A gente gostaria que fosse investido mais nos blocos de ruas, durante o dia, para que as comunidades tivessem, de fato, acesso a recursos para trabalhar nas suas comunidades, ao invés de investirem cachês milionários em artistas nacionais", cobra Wanessa.
Integrante do Laborarte desde 1983, Rosa Reis é uma das guardiãs da cultura maranhense / Arquivo Pessoal
Rosa Reis, coordenadora do Laboratório de Expressões Artísticas do Maranhão (Laborarte), fundado em 1970, lamenta que muitas brincadeiras e manifestações têm se perdido ao longo do tempo, apesar do esforço dos artistas populares.
Entre as manifestações que se perderam, ela destaca as brincadeiras do Urso Caprichoso e Tribos de Índio, além de blocos tradicionais como Casinha da Roça, Corso Carnavalesco e Dramas Carnavalescos.
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"Estas brincadeiras e manifestações representam a memória coletiva de comunidades ou regiões, de processos de vivência entre elas. Por isso entendemos que o apagamento leva até mesmo à perda da nossa identidade, à própria intolerância com a diversidade da nossa cultura maranhense", explica Rosa.
Relembrando carnavais históricos, Rosa aponta que até o final da década de 80, ainda eram comuns no estado os carnavais de rua e festas tradicionais em grandes clubes, com fantasias, máscaras e marchinhas, a exemplo do Gruta de Satã, clube mais popular da cidade de Viana, na baixada maranhense.
O clube era caracterizado pela figura de um diabo, pintado em cores extravagantes que se viam ao longe da fachada do prédio e ecoava marchinhas como "Garota, você é uma gostosura/Foi proibida pela censura…" e no domingo, mantinha ainda tradição dos chamados vesperais, festas de carnaval no início da tarde com a presença de crianças.
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Rosa explica que após os vesperais de domingo, na segunda-feira não havia muito movimento carnavalesco nas ruas e os foliões já recebiam o Tambor de Dona Roxa. A partir da insatisfação e pedidos de mais festas, o Laborarte criou o hoje tradicional "Carnaval de Segunda" como um espaço para resgatar e dar visibilidade às diversas manifestações maranhenses.
O Bloco do Imprensa resgata as tradicionais fantasias e o repertório de marchinhas em Imperatriz / Reprodução
Em Imperatriz, distante 628 quilômetros da capital, os clubes tradicionais já apagaram suas luzes, a tradição do tambor não é tão disseminada e o que ainda resiste do imaginário popular são as tradicionais marchinhas, entoadas nas ruas de maneira mais tímida, mas que ainda compõem o repertório de blocos mais recentes como o Bloco do Imprensa, criado por um grupo de jornalistas há 14 anos.
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Cantor e compositor, Erasmo Dibell é um dos puxadores de marchinhas no mini trio chamado carinhosamente de Jardineira, que ganha espaço no Bloco do Imprensa, e em horários específicos das festas oferecidas pelo poder público, que até 2023, mantinha ainda na programação o Festival de Marchinhas".
"O Festival de Marchinhas é uma ferramenta fundamental de resgate, mas lamentamos que o poder público não tem uma constância do calendário, especialmente no aspecto cultural, quando percebemos uma barbárie, um desleixo. Ele vinha revelando uma turma de gente nova que escutou dos avós, dos pais, e criavam e recriavam novas marchinhas. Como artista me vejo cumprindo o meu papel de manter viva essa tradição e compondo com naturalidade algo que sinto e faço por inspiração".