Caminhada em Porto Alegre revisita lugares de violações e de resistência durante ditadura militar
Neste domingo (10), ocorrerá nova edição do projeto Caminhos da Ditadura em Porto Alegre, que visita locais que serviram como palco do terrorismo de Estado ou de resistência nos anos de chumbo brasileiro sob o comando dos militares (1964-1985). A iniciativa começou a se desenhar em 2016 por estudantes de graduação de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e, desde então, se tornou referência para a construção da memória do período.
Os estudantes e professores formaram o mapa virtual que aponta espaços de tortura e articulação da repressão – oficial e clandestina. Pouco a pouco, o mapa ganhou novos locais com o incremento e com apontamentos sobre lugares ligados à resistência, além daqueles que contêm referências elaboradas após o fim da ditadura. Os 39 locais de violação dos direitos humanos citados pela Comissão Nacional da Verdade em 2014 estão lá e aumentaram ao longo do tempo. Hoje, já são 200 pontos mapeados.
A partir do mapa, foi desenvolvido o projeto Caminhos da Ditadura em Porto Alegre, que inclui visitas e caminhadas a alguns desses lugares. Foram realizados vários deles até hoje. Agora, no dia 10, será realizado mais uma vez, o último de 2024. Mais de 50 pessoas costumam participar destes ‘passeios’. Anita Natividade Carneiro, que esteve à frente do mapa lançado em 2016, mestranda em História pela Ufrgs, hoje é professora em escola municipal de Gravataí, trabalha na manutenção, no incremento do mapa e no aprofundamento das pesquisas sobre ada ditadura a partir da cidade, teve orientação da professora Caroline Bauer.
Os trajetos das caminhadas foram elaborados a partir de um esforço coletivo que incluiu pessoas de áreas como direito, comunicação, teatro, turismo e arquitetura e urbanismo. A professora diz que o RS teve o maior número de locais com violações de direitos humanos durante a ditadura (1964-1985), segundo conclusão da Comissão Nacional da Verdade divulgada em 2014. Para ela, isso se deve ao fato do estado fazer fronteira com o Uruguai e a Argentina, em razão da cooperação entre os países, com apoio estadunidense, para perseguir indivíduos que lutavam contra as ditaduras no Cone Sul, conforme a Operação Condor.
Natividade reforça que, além disso, o RS possui um histórico de resistência pré-golpe de 1964 com a mobilização da Campanha da Legalidade e do Grupo dos 11, ambos organizados por Leonel Brizola, bem como a força que o trabalhismo, do PTB, partido de João Goulart, tinha no Estado. “A vigilância precisava estar mais próxima”, diz.
Conforme a historiadora, o projeto foi ampliado para 200 pontos, com a inclusão de lugares da resistência, aqui entendida como qualquer atitude que desafiasse a ditadura e a repressão, como qualquer movimento civil ou militar de violação de direitos humanos em suas mais variadas formas. Além disso, o relatório foi lançado em 2014, nos 50 anos do golpe, mas a partir deste período muitas pesquisas foram desenvolvidas posteriormente, ampliando-se o total de locais no mapa. “Conforme o próprio documento da Comissão, no capítulo 15, buscaram-se espaços em que ocorreram violações de forma sistemática; já o nosso projeto adota um critério diferente, de inserir qualquer local que possua uma história relacionada com a ditadura em Porto Alegre”, diz.
Ideia foi desenvolvida por estudantes de história da UFRGS / Reprodução
Resistência
Também estão incluídos no mapa locais que tiveram outra atuação além da questão política como é o caso da “Casa da Luíza Felpuda”, localizado na Rua Barros Cassal, no Bom Fim, cuja atuação transcende a ideia de resistência política tradicional ao regime. “Fizemos isso para tentar romper com a ideia de que resistência é somente pegar em armas. As resistências também são diversas, seja a forma de expressão de gênero, sexualidade, classe ou raça, como vemos em muitos pontos do mapa.”
“A ditadura também pregava determinados padrões de moral e bons costumes, ligado a pautas mais conservadoras. Sabe-se que houve repressão contra pessoas que simplesmente viviam suas identidades, como aconteceu com a boate Flower’s, na Capital. A própria questão da raça e o debate sobre racismo eram perseguidos pela ditadura, que ainda acreditava em uma democracia racial, vigiando e reprimindo pessoas e movimentos que quisessem trazer a pauta sobre as relações étnico-raciais para um público mais amplo”, afirma Anita.
Entre os locais mapeados, há espaços que hoje são batalhões da Brigada Militar, sedes da Polícia Federal e do Comando Militar. Mas há também delegacias clandestinas, como a do Solar Conde de Porto Alegre, no Centro Histórico. “A ditadura queria preservar uma ideia de legalidade em suas ações, e o discurso oficial da época é de 'que não existia tortura'. Os centros clandestinos de tortura funcionavam desde os primeiros anos do golpe, um exemplo é o ‘Dopinho’, em Porto Alegre, na rua Santo Antônio, 600, bairro Bom Fim. Os locais escondidos serviam para que os agentes da repressão tivessem mais liberdade/autonomia em praticar tortura, funcionando fora de qualquer lei que ainda poderia existir nos lugares oficiais”. “O Dopinho merece um memorial, que estamos planejando”, afirma Anita.
Solar IAB, local de detenção e tortura em Porto Alegre durante a ditadura militar / Foto: Divulgação Badejo
Mapa digital
Ao clicar sobre cada um dos lugares no mapa digital, abre-se uma janela com explicação sobre o local, sempre referenciada por fontes acadêmicas – são frequentes as citações ao artigo Lugares de Repressão Política em Porto Alegre, de Raul Ellwanger e Vinicius Ribas, além de livros, teses, dissertações e do próprio relatório da Comissão Nacional da Verdade.
Anita conta, por exemplo, que a agência bancária da Caixa Econômica Federal à Rua José do Patrocínio (assaltada pelos integrantes da luta armada em 1969) e da casa da Rua Déa Coufal, em Ipanema (que teria servido de base para as ações de milícias paramilitares ilegais que atuavam na repressão), são outros exemplos que devem ser citados e lembrados.
Alguns locais contêm placas, por conta de um projeto chamado Marcas da Memória, organizado pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos, que inseriu nove placas em lugares ligados à violação de direitos humanos na capital gaúcha. Existem outros espaços de memória com monumentos como esse e também o Memorial aos Mortos e Desaparecidos e o Memorial Pessoas Imprescindíveis.
Como participar da caminhada
O custo para participar da caminhada é de um quilo de alimento não perecível, destinado sempre à Ocupação Mulheres Mirabal, que acolhe mulheres vítimas de violência. Os interessados podem se inscrever na plataforma Sympla a partir de domingo, 3 de novembro. Cada inscrito pode levar mais um para participar da programação. O local da partida só é revelado na hora por questões de segurança. “Há ainda muita gente fanática pelos tempos da ditadura ou jovens extremistas de direita, que podem ir ao local e causar transtornos sérios aos participantes”, alerta a professora.
“Este ano realizamos nove caminhadas, algumas online em razão das enchentes. Além da nossa idealização do projeto, temos os mediadores que prestam uma ajuda importantíssima para a execução dessas iniciativas”, afirma Anita, que agora, além de dar aulas em Gravataí, prepara-se para fazer doutorado em História.
Projeto de lei
Outra iniciativa sobre os tempos da ditadura tramita, muito lentamente, na Câmara Municipal de Porto Alegre. É um projeto de lei que institui o Trajeto de Memória Caminhos da Ditadura na Capital. A iniciativa é de autoria do vereador Giovani Culau e Coletivo (PCdoB) e visa criar conjunto de áreas públicas e estruturas do espaço urbano do município que evocam a memória histórico-social dos anos entre 1964 e 1985.
A intenção do projeto é promover o conhecimento e a vivência sobre os lugares de memória da ditadura civil-militar na Capital; refletir sobre a memória e o legado do período ditatorial em Porto Alegre; fortalecer os debates sobre a nomeação de espaços públicos com homenagens às vítimas da ditadura; e reforçar a necessidade de criação de espaços de memória em diferentes bairros dedicados à lembrança e à história das vítimas.
O trajeto proposto tem os seguintes pontos: Teatro Leopoldina, que se localizava na esquina da rua João Telles com a av. Independência; Hospital Materno Infantil Presidente Vargas, na Independência; Dopinho, na rua Santo Antônio; Esquina Maldita, entre a rua Sarmento Leite e Osvaldo Aranha; Campus Centro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Praça Argentina; Loja Masson, que se localizava na rua dos Andradas; e Esquina Democrática.
Na exposição de motivos do projeto, Culau afirma que “carecem iniciativas por parte do município que proponham uma maior reflexão e conhecimento para a população sobre os lugares relacionados à violação de direitos humanos durante a ditadura civil-militar brasileira”. O vereador destaca que o trajeto é uma proposta de “política permanente de história e memória da cidade”.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul