'Vi o pavor na expressão das pessoas', diz diretora do MDA ao visitar área onde polícia matou dois sem-terra no Pará
“Eu vi com os meus próprios olhos e vi o pavor na expressão dessas pessoas”. A descrição de Cláudia Dadico, do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), é de quando chegou à Fazenda Mutamba, sob rasante de um helicóptero da polícia, depois de uma operação da Polícia Civil do Pará assassinar dois trabalhadores sem-terra.
A operação policial contra o Acampamento Terra Prometida em Marabá (PA) no último 11 de outubro teve como saldo, além dos dois mortos que, segundo os acampados estavam dormindo nas suas redes, quatro presos e denúncias de tortura. Uma pessoa tomou um tiro na perna, outra na mão.
“Quando desembarcamos do carro, o que vimos foram mulheres chorando, crianças chorando, muito apavoradas. Em razão do acontecido e também do helicóptero sobrevoando”, relata Dadico, juíza federal e diretora de Conciliação e Mediação de Conflitos Agrários do MDA. O órgão era antes conhecido como Ouvidoria Agrária.
Nesta segunda-feira (21), dez dias após a ação policial, completou o prazo informado pela Secretaria de Segurança Pública do Pará (Segup) ao Brasil de Fato para a manutenção do policiamento na área ocupada pelos 200 sem-terra. De acordo com a secretaria do governo de Helder Barbalho (MDB), houve a necessidade de rondas com “uso de aeronave do Grupamento Aéreo de Segurança Pública” para garantir “tranquilidade e ordem pública”.
Vídeos e relatos dos acampados enviados à reportagem nesta terça-feira (22), no entanto, atestam que o helicóptero segue no local.
Moradores do Acampamento Terra Prometida registram o voo baixo do helicóptero sobre o barracão comunitário / Arquivo Pessoal
As versões do governo do estado e dos acampados sobre a operação policial são bastante distintas. Segundo a Polícia Civil, a operação Fortis Status, comandada pelo delegado Antônio Mororó, tinha o objetivo de cumprir três mandados de prisão e 18 de busca de apreensão por denúncias de furto, extração de madeira, associação criminosa e queimadas irregulares. Os policiais teriam sido recebidos com tiros.
O que os trabalhadores sem terra alegam é que foram surpreendidos em dois barracões coletivos por volta das 4h da manhã sob rajadas de balas, quando quase todos estavam adormecidos. Em uma carta conjunta, entidades como a Comissão Pastoral da Terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) denunciam que acampados foram submetidos a horas de torturas.
A área em disputa é reivindicada pela família Mutran, cuja fazenda já foi flagrada com trabalho escravo em 2002, e está com reintegração de posse suspensa. Durante a visita ao acampamento, Cláudia Dadico ouviu os acampados separadamente. “Os depoimentos foram muito coesos. Todos emprestando muita credibilidade mesmo aos relatos, porque coincidiam inclusive em detalhes”, conta.
Ainda sem acesso aos laudos do Instituto Médico Legal (IML), o MDA e o Ministério Público Federal (MPF) solicitaram que seja feito um exame residuográfico nos corpos dos sem-terra, para averiguar se havia resíduos de pólvora em suas mãos. Quando chegou a solicitação, o corpo de Edson Silva e Silva já havia sido liberado. O de Adão Rodrigues de Sousa, que deixou cinco filhos, ficou retido para a perícia.
A investigação sobre o episódio está a cargo da Delegacia de Conflitos Agrários (Deca) de Marabá – a mesma que realizou a operação. Questionado pela reportagem, o MPF do Pará informou que foi instaurado um procedimento administrativo para “acompanhar as medidas adotadas pelas instituições de segurança pública e de controle da atividade policial” na área.
“A gente não deixa de ficar perplexo de ver o Estado empregando tantos recursos de segurança pública numa ação como essa, resultando nesse estado de pavor e medo de uma comunidade tão vulnerável”, salienta a diretora de Conciliação e Mediação de Conflitos Agrários do MDA.
Cláudia Dadico conversou com o Brasil de Fato sobre o que testemunhou na comunidade que está, desde então, sitiada pela Polícia Civil. Abordou também as medidas que estão sendo tomadas sobre o caso e o acirramento de conflitos agrários no país.
Confira a entrevista na íntegra.
Brasil de Fato: Enquanto membra do MDA, você esteve na Fazenda Mutamba após a operação policial que matou dois sem-terra. O que constatou?
Cláudio Dadico: Estive lá com o conciliador do Incra local. Nós ouvimos as pessoas que estavam presentes no momento da ação policial e nos trouxeram relatos muito preocupantes.
Relatos de que esse agrupamento policial teria chegado já atirando, que anunciou ser polícia só num segundo momento, que teriam entrado nos dois barracões ainda antes de amanhecer. A gente ouviu os acampados separadamente e os depoimentos foram muito coesos. Todos emprestando muita credibilidade mesmo aos relatos, porque coincidiam inclusive em detalhes.
Também conversamos com o secretário de Segurança Pública do Estado do Pará. Ele nos informou que ali há uma investigação de associação para a prática crimes ambientais, de furto de gado e de incêndios. Chama a atenção a desproporção do aparato policial que foi utilizado, diante do potencial lesivo desses crimes. São crimes que permitem uma abordagem a partir de técnicas de inteligência, não necessariamente uma operação tão violenta que resultasse em duas mortes.
A comunidade ainda nos mencionou a existência de três pessoas que estariam desaparecidas, mas ainda não nos enviaram a identidade dessas pessoas e, portanto, é uma informação que não foi confirmada por nós.
O que está confirmado realmente é o assassinato de duas pessoas. Segundo todas as testemunhas que ouvimos, as duas pessoas estariam deitadas em suas redes dormindo no momento em que foram mortas. Nenhuma das duas era alvo dos mandados de prisão preventiva, nem dos mandados de busca e apreensão e não tinham antecedentes criminais.
Um deles, o seu Adão, sobre quem a gente teve mais informações, inclusive contato com a família, era pai de cinco filhos, dois maiores e três filhas menores. Tinha netos. Teria vindo do Tocantins na esperança de conseguir ser assentado da reforma agrária naquele imóvel.
Uma das quatro pessoas que foram presas, a gente teve acesso ao depoimento dele na audiência de custódia. Ele teria ingressado na área para colher açaí e acabou sendo preso.
A gente também ouviu pessoas que foram feridas. Uma levou um tiro na perna, outro levou um tiro na mão. Também há narrativas de agressões físicas bastante fortes da polícia no sentido de obter informações a respeito das pessoas que eram alvos dos mandados de prisão preventiva.
Como tudo isso se insere no contexto de uma área de um conflito agrário muito antigo, uma área que inclusive já teve registro de trabalho análogo à escravidão, é uma situação que está sendo acompanhada por nós dentro dessa moldura mais ampla de uma disputa fundiária. Estamos acompanhando com preocupação os próximos desdobramentos.
As versões do Estado e dos acampados sobre o que aconteceu são muito diferentes. Vocês tiveram acesso ao laudo do IML, a perícia apontou algo sobre como eles teriam sido mortos?
As duas versões são realmente muito diversas. Nós não tivemos acesso a esses laudos ainda. Sugerimos para as autoridades que também fosse feito o exame residuográfico: aquele que se faz nas mãos dos corpos para verificar eventuais resíduos de pólvora, caso tenham efetivamente feito disparos de arma de fogo.
Quando o pedido chegou ao IML, um dos corpos já havia sido liberado, o corpo do seu Edson. Mas o corpo do seu Adão foi retido até que chegassem os peritos de Belém e fosse realizado esse exame. Nós não temos ainda acesso a nenhum laudo, nem da necrópsia, nem residuográfico, por hora.
Como vocês sentiram que está a comunidade depois da operação?
Estivemos lá no dia 12 de outubro, que foi o dia seguinte à operação. Fomos até esse barracão onde as famílias decidiram se reunir. Fomos num comboio, eu fui numa viatura do Incra e outros carros nos acompanharam, organismos de direitos humanos e a CPT [Comissão Pastoral da Terra].
Quando estávamos nos aproximando do barracão, já avistamos o helicóptero da polícia. Conforme nós fomos chegando mais perto, o helicóptero também foi se aproximando do nosso comboio, chegou muito perto. Não entendemos a razão de aquele helicóptero chegar tão perto de uma viatura do Incra. Chegamos até o local onde as famílias estavam reunidas e realmente presenciamos o helicóptero voando muito baixo.
Quando nós desembarcamos do carro, o que vimos foram muitas mulheres chorando, crianças chorando, muito apavoradas. Em razão do acontecido e também do helicóptero sobrevoando.
Procurei informações com o secretário [de Segurança Pública] Ualame Machado. A informação que ele me deu é que haveria – eu não tive acesso, porque é sigiloso – uma decisão judicial que determinava que a polícia civil permanecesse monitorando a área da sede da fazenda para evitar novas ocupações. Eu perguntei a ele então se esse monitoramento por helicóptero vai prosseguir por tempo indeterminado, e ele disse que a princípio a ordem era essa.
Eu vi com os meus próprios olhos e vi o pavor na expressão dessas pessoas. Uma coisa que me chamou muito a atenção é que são pessoas em situação de pobreza extrema. Muitas crianças sem roupa, sem sapato. Realmente são pessoas muito vulneráveis do ponto de vista social e econômico.
A gente não deixa de ficar perplexo de ver o Estado empregando tantos recursos de segurança pública numa ação como essa, resultando nesse estado de pavor e medo de uma comunidade tão vulnerável.
A gente não descarta, é claro, que podem ter pessoas realmente praticando estes crimes. Mas a questão é como esses crimes estão sendo investigados e combatidos. É uma política de segurança pública no campo que se assemelha, cada vez mais, com as políticas de segurança pública que são utilizadas, por exemplo, nas favelas do Rio de Janeiro. Nós não vemos esse tipo de atuação quando se tratam de crimes praticados por pessoas ricas.
O que é possível fazer, tanto a curto prazo em relação à segurança da comunidade, quanto do ponto de vista de resolução do conflito agrário? É possível que depois desse episódio se acelere a regularização da área?
Eu produzi um relatório interno narrando os fatos que presenciei e solicitei ao superintendente do Incra em Marabá que avalie a possibilidade de obtenção daquela área para fins de destinação para a reforma agrária. Esse pedido foi feito por parte da Ouvidoria.
Agora, é claro, isso depende de uma série de outros fatores, como os recursos orçamentários, e é uma decisão que precisa ser validada internamente nas instâncias do Incra.
Quanto à segurança pública, realmente cabe um diálogo entre as autoridades federais e estaduais no sentido de verificar o que é possível de ser feito ali para que esses crimes não deixem de ter a sua perseguição penal, mas sem um custo em vidas e sem um custo tão elevado do ponto de vista do que essa comunidade está vivenciando, com momentos de tanto terror.
Também direcionamos um pedido para que o Ministério Público do Estado do Pará faça essa investigação a respeito das denúncias de que essas mortes teriam consistido em execuções e os demais alegados abusos que teriam sido praticados durante a operação. Encaminhamos, inclusive, esse pedido ao procurador geral de justiça do Estado do Pará.
Vocês consideram que estamos vivendo um acirramento dos conflitos no campo no país? Se sim, por quê?
O nosso departamento, que é a antiga Ouvidoria Agrária Nacional, tinha esses dados muito atualizados entre 1999 e 2016. Em 2016 ele foi descontinuado. Restou deste período um hiato de dados que estamos tentando reconstruir. Eu não saberia te dizer, portanto, se vivemos um aumento quantitativo.
O que a gente pode afirmar é que do ponto de vista qualitativo, os conflitos agrários estão um pouco diferentes de ocorrências do passado.
Essa questão de uma organização por parte dos produtores rurais, no sentido de fazer um desforço pessoal em grupo, apelando para os vizinhos e outras pessoas – isso a gente não tinha visto um registro anterior. E agora realmente isso está alcançando uma outra dimensão. Grupos como Invasão Zero, organizados em vários estados, estão realmente constituindo um padrão de funcionamento.
A questão da violência policial também nos preocupa bastante. Não é privilégio do estado do Pará, a gente tem visto em outros estados ocorrências bastante graves. Tivemos já registradas ocorrências em que a Polícia Militar durante uma desocupação extrajudicial prendeu uma defensora pública, prendeu agentes pastorais.
Em Mato Grosso, né?
Isso, no Acampamento Cinco Estrelas. No Rio de Janeiro a gente também teve relatos de uso de helicóptero em cima das comunidades. Comunidades que estavam num terreno do Incra, numa área pública federal e ainda assim tiveram esse constrangimento.
Então, o que a gente vê é que os conflitos, as disputas por terra ainda são tema muito presentes na realidade brasileira. Mas que estão, de certa forma, um pouco repaginados.
Primeiro, porque o governo anterior facilitou e estimulou demais o acesso às armas e à autodefesa armada. Isso se reflete agora no campo pesadamente armado.
Segundo, em várias ocorrências nós vemos as forças policiais atuando muito mais contra as populações do campo do que fazendo, por exemplo, combate a crimes como grilagem, desmatamento em série, uso de agrotóxico fora dos padrões, enfim, a crimes de maior potencial lesivo ao interesse público.
Nós recebemos o Incra do governo passado sucateado, com uma estrutura normativa contrária às políticas públicas de reforma agrária. Isso durante o primeiro ano de governo foi sendo ajustado e agora se espera que haja mais aquisições e destinações de terra para a reforma agrária e que isso atue como um fator de enfrentamento dessas tensões e conflitos.