Polícia mata dois sem-terra e movimentos denunciam execuções e tortura contra acampamento no Pará
Policiais civis da Delegacia de Conflitos Agrários (Deca) de Marabá assassinaram dois trabalhadores sem terra no acampamento da Associação Rural Terra Prometida, na última sexta-feira (11), no Pará. Outros quatro foram presos e, segundo os acampados, torturados por horas.
Desde então, as cerca de 200 pessoas que ocupam a área em disputa – localizada na Fazenda Mutamba, da família Mutran – estão agrupadas em um barracão coletivo. Afirmam que um helicóptero da polícia sobrevoa e dá rasantes, todos os dias, no local.
Os sem-terra denunciam que a operação policial Fortis Status (Estado forte, em latim), comandada pelo delegado Antônio Mororó, deixou feridos. Há pessoas com tiro na mão, na perna e com a costela quebrada.
A Polícia Civil do Pará informa que a operação tinha o objetivo de cumprir três mandados de prisão e 18 de busca e apreensão por denúncias de furto, extração de madeira, associação criminosa, tentativa de homicídio, porte ilegal de armas e queimadas irregulares. Nenhum dos presos ou dos mortos, no entanto, era alvo dos mandados.
Alerta de conteúdo sensível – Créditos: Brasil de Fato Moradores do acampamento Terra Prometida denunciam que foram alvo de tiros disparados pela polícia – Créditos: Arquivo pessoal Moradores do acampamento Terra Prometida denunciam que foram alvo de tiros disparados pela polícia – Créditos: Arquivo pessoal
Os assassinados são Edson Silva e Silva e Adão Rodrigues de Sousa. Este último deixou cinco filhos e, de acordo testemunhas, foi executado enquanto dormia na rede. A polícia alega que houve confronto.
O acampamento tem organização independente, mas o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Pará é uma das entidades que vem dando suporte ao coletivo. Polly Soares, da direção estadual do MST, esteve no território no sábado (12), horas depois do ataque. "As famílias estão lá, sofrendo violência e intimidação todos os dias", descreve. "A gente presenciou o voo rasante do helicóptero, com policiais dentro apontando armas", conta Soares.
Sem-terra registram estar sendo rodeados por helicóptero em voo baixo / Acampamento Terra Prometida
O que aconteceu, segundo movimentos
Nesta segunda-feira (14), o MST, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), e o Instituto José Cláudio e Maria (IZM) e outras entidades soltaram uma nota em que, a partir dos relatos dos acampados, reconstituem o episódio.
Segundo o documento, cerca de 16 trabalhadores dormiam e dois preparavam o café em um barracão coletivo quando, por volta das 4h da manhã de sexta (11), foram surpreendidos por policiais gritando "perdeu, perdeu" e atirando. "No desespero e na escuridão cada um tentou escapar como pôde dos tiros. O resultado foram dois mortos, vários feridos a bala e quatro presos", diz a nota.
"O discurso divulgado pelo delegado Mororó e incorporado pelo Secretário de Segurança Pública do Estado", diz o texto, se referindo a Ualame Machado, do governo de Helder Barbalho (MDB), "é que se tratava de uma organização criminosa fortemente armada, envolvida em venda ilegal de madeira, roubo de gado e outros crimes".
"O resultado da operação que envolveu dezenas de policiais, várias viaturas, dois helicópteros, foi a apreensão apenas de 7 espingardas cartucheiras e algumas munições. Nenhuma arma pesada, nenhuma motosserra, nenhum caminhão de madeira, nenhum gado roubado, nada mais", segue o texto, assinado também pela Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos. "A operação, nessa perspectiva, foi uma farsa", concluem as entidades.
"Os trabalhadores não morreram em confronto, essa versão é inventada", salienta Polly Soares. "Não existe confronto quando a pessoa está dormindo e é surpreendida por rajada de bala. A tese do confronto é mentirosa, é para criminalizar os trabalhadores", diz a dirigente do MST.
"O delegado titular da Deca, Antônio Mororó, esteve presente nas torturas e nos assassinatos. A gente pede que ele seja afastado. Este homem não tem condição nenhuma de permanecer à frente da delegacia. E a gente acredita que a permanência dele vai prejudicar as investigações. Como é que a polícia vai investigar a polícia?", questiona Polly.
O Brasil de Fato pediu um posicionamento da Polícia Civil do Pará sobre as denúncias, mas não teve resposta até o fechamento desta matéria. Caso haja retorno, o texto será atualizado.
Despejo suspenso temporariamente
A área de 12.229 hectares da Fazenda Mutamba, localizada na área rural da cidade de Marabá, tem três ocupações de famílias sem terra. O núcleo alvo da operação policial está a cerca de 500 metros da sede da propriedade da família Mutran e não foram despejadas por pouco.
Em março, a reintegração de posse foi decretada pelo juiz Amarildo José Mazutti, da Vara Agrária de Marabá. Em maio, no entanto, foi suspensa temporariamente em maio pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Cristiano Zanin.
Em sua decisão, Zanin reforça a obrigatoriedade de serem cumpridas as medidas que, segundo a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, devem anteceder remoções forçadas. Entre elas, inspeções judiciais no território e que o caso seja debatido em uma comissão de conflito fundiário no Tribunal de Justiça.
Fazenda com histórico de trabalho escravo
Situada no sudeste do Pará, a fazenda Mutamba integra uma "região de histórico de conflito agrário e trabalho forçado", contextualiza a deputada estadual paraense Lívia Duarte (Psol), que acompanha o episódio. A parlamentar encaminhou as denúncias de execução e tortura às secretarias de Segurança e de Direitos Humanos do Pará.
"A área não fica longe da curva do S", ilustra, se referindo ao palco do Massacre de Eldorado do Carajás. "É uma região, por exemplo, onde a minha família, meu avô, meu pai, foram submetidos a trabalho escravo por toda a vida", conta Duarte.
A Fazenda Mutamba, assentada sobre um antigo castanhal desmatado para dar lugar à pastagem, foi flagrada com trabalho escravo em agosto de 2002. Na ocasião, 25 trabalhadores foram resgatados. Dois anos depois, a empresa Jorge Mutran Exportação e Importação Ltda entrou na "lista suja" do trabalho escravo e teve de pagar uma multa de R$ 1,3 milhão ao Fundo de Amparo ao Trabalhador.