O que permanece atual no filme 'Notícias de uma guerra particular' 25 anos após a estreia?
Neste ano, o documentário “Notícias de uma Guerra Particular” completa 25 anos. O filme, que se tornou referência no debate sobre a segurança pública e os direitos humanos, retrata o ciclo da violência urbana no Rio de Janeiro a partir do cotidiano no Morro Dona Marta, no bairro de Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro, e da contraposição de falas de traficantes, de policiais e de moradores.
As entrevistas descrevem um cenário de guerra, como o título resume, mas não de qualquer guerra, uma distante para uma parte da população que não convive com os conflitos diários e que é determinada em torno do discurso do combate ao tráfico de drogas.
Em 2024, elementos do cenário narrado a partir das filmagens dirigidas por Kátia Lund e João Moreira Salles, não se restringem aos anos 1990 e permanecem atuais, na análise do antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares, especialista em segurança pública e autor de livros sobre o tema, incluindo “Elite da tropa”, em parceria com André Batista, Rodrigo Pimentel e Claudio Ferraz, que chegou ao cinema como “Tropa de elite”.
"O documentário é magnífico não apenas como registro de época, mas porque flagra o aspecto mais importante e tão evidente quanto oculto da situação dramática que ainda é a nossa, no Rio de Janeiro: a coletiva, insana e institucionalizada compulsão à repetição expressa na 'guerra às drogas', uma suposta política de segurança (ou política criminal) refratária a qualquer avaliação minimamente racional", explica em entrevista ao Brasil de Fato.
No entanto, atentar para a atualidade do filme não quer dizer afirmar que a situação permanece a mesma de 25 anos atrás. Conforme argumenta Itamar Silva, liderança comunitária do Morro Santa Marta, ativista de favela e do movimento negro há pelo menos quatro décadas, a atuação de forças se complexificou com personagens mais poderosos, como os representantes das milícias, e a consequente intensificação da disputa violenta pelo controle de territórios.
"Seria ingenuidade de minha parte dizer que nada mudou. Sim, mudou para pior, complexificou o quadro, ampliou as áreas e os elementos a serem combatidos e controlados. Ficou tudo mais perigoso. A política está contaminada", avalia.
Tanto Itamar quanto Luiz Eduardo participaram do debate após a exibição do documentário no Rio de Janeiro na última terça-feira (1º), programação de estréia do Cine Cidadania, organizado pela Universidade da Cidadania do Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Depois de reverem o filme, eles compartilharam suas análises com o Brasil de Fato. As entrevistas podem ser conferidas a seguir:
Brasil de Fato: O filme completou 25 anos neste ano, como uma referência quando se trata da discussão sobre segurança pública. Como avalia as mudanças ao longo dos últimos 25 anos?
Luiz Eduardo Soares: Revendo o filme, 25 anos depois, o que mais me perturbou e comoveu foi constatar sua atualidade, a despeito das mudanças que ocorreram na sociedade no mundo do crime. O documentário é magnífico não apenas como registro de época, mas porque flagra o aspecto mais importante e tão evidente quanto oculto da situação dramática que ainda é a nossa, no Rio de Janeiro: a coletiva, insana e institucionalizada compulsão à repetição expressa na “guerra às drogas”, uma suposta política de segurança (ou política criminal) refratária a qualquer avaliação minimamente racional.
Repete-se, acriticamente – por uma espécie de inércia patológica ou atavismo histórico – o que vem dando errado há décadas: invasões bélicas a territórios vulneráveis, provocando a morte de suspeitos, inocentes das comunidades e policiais, sem que todos esses sacrifícios produzam qualquer resultado em benefício da segurança pública.
O resultado são tragédias sucessivas que se acumulam, promovendo o genocídio de jovens negros e pobres, aprofundando as desigualdades, intensificando o racismo estrutural, fertilizando as raízes iníquas do patriarcalismo, radicalizando a descrença popular no Estado democrático de direito, cada vez mais distante da experiência popular. Entre 2003 e 2023, 21.662 pessoas foram mortas por ações policiais no estado do Rio e menos de 10% desses casos chegaram a ser julgados.
Itamar Silva: A pergunta me leva a olhar para o retrovisor e identificar alguns marcos nos últimos 25 anos, principalmente nessa área da segurança pública: as chacinas dos últimos anos, como o Massacre do Jacarezinho, com 29 pessoas mortas em maio de 2021 e os cinco jovens metralhados em Costa Barros, em novembro de 2015. Também o aumento da letalidade e da vulnerabilidade dos moradores de favelas em decorrência de operações policiais. Morre-se inclusive dentro de casa, além de aumentar o número de crianças alvejadas nestas operações, como no caso do menino João Pedro baleado em São Gonçalo.
Em 2008, é verdade, houve tentativa de se criar uma política de segurança pública: a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Esta experiência interrompeu, por um breve período, a escalada da violência. No entanto, em 2016, volta a escalar e evidencia a dificuldade de o Estado controlar a polícia no estado.
Também é preciso levar em consideração a expansão do controle territorial da milícia. A mídia passa a noticiar o engendramento da milícia na estrutura do Estado e seu espalhamento por todo o Estado. Aumenta o conflito direto com os grupos do tráfico de drogas. A milícia e o tráfico elegem representantes nas casas legislativas: Câmara Municipal e Assembleia Legislativa. Há uma intensificação da disputa violenta pelo controle de territórios: milícia versus polícia; milícia versus tráfico, tráfico versus tráfico e polícia atuando de maneira parcial. Neste contexto, acontece o assassinato da vereadora Marielle Franco
Diante deste quadro, seria ingenuidade de minha parte dizer que nada mudou.
Sim, mudou para pior, complexificou o quadro, ampliou as áreas e os elementos a serem combatidos e controlados. Ficou tudo mais perigoso. A política está contaminada.
Brasil de Fato: O filme retrata o ciclo da violência urbana no Rio de Janeiro a partir do recorte do dia a dia no Morro Dona Marta, contrapondo as falas de traficantes, de policiais e de moradores. Hoje, para produzir uma análise do ciclo da violência na cidade, um filme também teria que partir desses mesmos personagens?
Luiz Eduardo Soares: Hoje, poder-se-ia dizer que o elenco aumentou, há uma variedade maior de personagens, arenas e instituições diretamente envolvidas. Nos anos 90, havia o que chamávamos “polícia mineira”, embriões das milícias, assim como já estavam presentes as redes que conectavam políticos, empreendimentos que parasitavam municípios, segmentos policiais corruptos, tráfico de armas e drogas, sistema penitenciário e socioeducativo degradado.
Entretanto, as conexões se complexificaram, os problemas se tornaram mais graves e o populismo conservador, que navegava nos trilhos dessa constelação instável e perversa, encontrou condições políticas que o cooptaram e o submeteram à força ideologicamente centrípeta do neo-fascismo bolsonarista, aliado a determinadas frações da religiosidade popular neo-pentecostal.
Portanto, é claro que o filme, hoje, tenderia a incorporar outros protagonistas, e daria destaque a fenômenos que não existiam, como as redes sociais virtuais. Contudo, essencialmente, o movimento apreendido pelo documentário permaneceria inalterado: ainda hoje padecemos da mesma compulsão à repetição: os braços do Estado matam negros jovens e apontam para as favelas, orientando o olhar moral coletivo, comandando o endereçamento da abjeção.
Itamar Silva: Um novo filme, hoje, tratando com honestidade e profundidade a mesma temática, teria que envolver os seguintes personagens: o Estado, seu executivo e suas representações; as casas legislativas: Câmara Municipal e Assembleia Legislativa, empresários e órgãos de controle (por exemplo: TCE, TCM, etc); o sistema de justiça e o movimento social, em particular, o movimento de mães e mulheres de vítimas fatais por ação das polícias.
Seria interessante contrapor esses personagens, expondo as evidências de relações promíscuas e protecionistas, que geram mortes que não são investigadas e nem julgadas, principalmente nas áreas periféricas do Estado. Essa dinâmica alimenta o medo na população, gerando um ambiente propício para a extrema direita se apresentar como salvadora da pátria, pelo viés do autoritarismo e redução de direitos.
Brasil de Fato: No documentário, a violência imposta pelo conflito entre tráfico e polícia é frequentemente comparada com a de um país em guerra civil. Qual seria a comparação possível de estabelecer hoje?
Luiz Eduardo Soares: Há uma estagnação inclusive vocabular. O léxico ainda é o mesmo. Falava-se em guerra, é também de guerra que se fala hoje. Os policiais são treinados e se pensam como guerreiros, combatentes. Concebem suas instituições como máquinas de guerra. Os melhores profissionais são os que “vibram”, os “operacionais”. Favelas são confundidas com teatros de guerra. Mais de três décadas depois da promulgação da Constituição cidadã, polícias são definidas por oficiais como inseticidas sociais, devotadas a exterminar os “inimigos internos”. O suspeito continua sendo o inimigo a “neutralizar”. As polícias lograram formar enclaves institucionais, refratários à autoridade política, civil, republicana, e refratárias à Constituição.
A despeito de heterogeneidades e contradições internas, as culturas corporativas hegemônicas, nas polícias, herdaram valores (e visões sobre o que devem ser as polícias, quais suas funções) dos porões da ditadura, os quais, por sua vez, ecoavam uma história bem mais remota e sombria, remetendo à escravidão. O insulamento que caracteriza o enclave só se tornou possível pela cumplicidade ativa e passiva do Ministério Público e da Justiça, assim como deve sua permanência à solidariedade de políticos, setores da mídia e da própria sociedade.
Portanto, se tomarmos como referência a Constituição, especialmente o conceito de Estado democrático de direito, não estamos imersos em uma guerra civil, mas em ambiente institucional anômalo, marcado pela dualidade entre poder e autoridade – esta deriva da soberania popular, pela mediação do voto ou de postulações consagradas na Carta constitucional. Os aparatos de coerção (não só as polícias, o governo Bolsonaro demonstrou que também as Forças Armadas são enclaves refratários à autoridade civil), que sustentam, em última instância, a conversão da autoridade em poder, na medida em que se autonomizaram, criaram uma brecha, injetando incerteza e gerando fragilidade na autoridade e em suas fontes.
Não há guerra, mas tampouco existe Estado democrático de direito.
Dada a natureza fraturada das matrizes institucionais: de um lado, a força; de outro, a autoridade. A tendência é que a primeira devore a segunda, gradual ou abruptamente. Por ora, matando jovens negros; um dia, talvez, esmagando a democracia – ou o que dela restar.
Itamar Silva: No Rio de Janeiro se banalizou chamar os conflitos armados, envolvendo polícia, milícia e tráfico, de guerra. Me causa um certo incômodo porque esse jargão serve para desresponsabilizar o Estado pelas mortes ocorridas e, também, serve para as polícias justificarem as execuções sumárias e os recorrentes desrespeito aos direitos humanos. A guerra permite suspender os direitos civis e ninguém é responsabilizado.
Fonte: BdF Rio de Janeiro