Em Porto Alegre, Jeferson Tenório, José Falero e Marcelino Freire debatem gênero, raça e classe em suas obras
“Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho/ Mas eu vim de lá pequenininho/Alguém me avisou pra pisar neste chão devagarinho (…) Foram me chamar /Eu estou aqui, o que é que há?”. O trecho é da música Alguém me avisou, de Dona Ivone Lara, entoada pelo escritor Jeferson Tenório e público na roda de conversa realizada no último sábado (16), durante a 70ª Feira do Livro de Porto Alegre. Participaram ainda os escritores José Falero e Marcelino Freire. A mediação foi de Nanni Rios, jornalista, livreira e curadora da Livraria Baleia.
O Teatro Carlos Urbim ficou pequeno para o bate-papo entre os escritores, parte do público presente ficou ao redor da lona, acompanhando o debate de pouco mais de uma hora. Nele Tenório, Falero, Freire e Nanni Rios, conversaram sobre as influências, experiências, inspirações, desafios das obras e seus lugares de fala.
Citando a pesquisa da professora Regina Dalcastagnè, que aponta que a maioria dos personagens da literatura brasileira são homens brancos, de grandes centros, muito preocupados com o seu próprio umbigo, Nanni indagou aos escritores sobre a interseccionalidade entre gênero, raça e classe na produção nas obras dos convidados.
Falero pontuou que apesar da preocupação sociológica dos personagens, em muitas das porções de suas elaborações estéticas, gosta de deixá-las ocultas. “Algumas porções da minha elaboração eu gosto de manter acontecendo de maneira espontânea. Evidentemente, eu tenho preocupação mais sociológica dos personagens que vão aparecer, das experiências que vão aparecer, mas eu não preciso pensar muito sobre isso, porque eu vim de lá”, ressaltou.
“Quando eu começo a contar histórias baseadas na minha experiência social, da minha família, no modo como a gente experimenta o mundo, a maioria vai ser negra, a maioria vai ser trabalhadora, a maioria vai ser das classes populares. Eu não tenho como fazer diferente”, complementou.
Se em Supridores ele pautou a precarização do trabalho no país, em seu novo livro, Vera, ele fez observando as mulheres da sua família. “Aqui estou preocupado nas relações de gênero. Eu acho interessante a gente pensar como isso é mais grave quando tu considera a intersecção com raça, por exemplo. A gente sabe que, por exemplo, nas duas últimas décadas, o feminicídio reduziu contra as mulheres brancas, mas aumentou contra as mulheres negras”, destacou.
Público lotou o Teatro Carlos Urbim / Foto: Juliana de Deus/CRL
Origens
Ao entoar a música Alguém me avisou, Tenório disse que ela é de uma sabedoria ímpar. “Essa coisa de pisar no chão devagarinho, de fazer uma análise do terreno, entender de onde se vem, as origens. A origem de uma população branca, principalmente uma população branca no Rio Grande do Sul, que tem acesso à sua ancestralidade, documentos, tem uma série de maneiras de saber de onde veio. No caso da população negra, a gente precisa inventar essas origens. É uma espécie de raiz movente”, afirmou
Segundo ele, ao mesmo tempo que você finca a raiz numa origem imaginada, também se move. “E é nesse movimento que a gente corre o risco de se perder. É mais ou menos isso que trata o De onde eles vem”.
No seu recente lançamento, o escritor conta a história de Joaquim, que chega à universidade por meio das políticas de cotas e precisa lidar com um mundo difícil, tentando não cortar as relações com as suas origens, com as pessoas com quem ele conviveu. “É muito comum, que pessoas, os jovens, quando entram na universidade e vêm de uma periferia, começam a ter contato com esse mundo universitário e já não conseguem encontrar uma identificação com o lugar de onde veio. E nessa trajetória entram as questões de classe, as questões de raça e principalmente de gênero também”.
Presença Familiar
Por sua vez, Freire disse que seu lugar de fala se encontra sempre em três palavras: a sua mãe, Maria do Carmo Freire, dona Carminha; seu pai, Antônio Gilberto Freire, seu Antônio; e Sertânia, cidade pernambucana onde nasceu. “Essas três palavras têm ramificações, mas nunca deixam de estar no que eu escrevo, desde o primeiro livro. (…). A questão LGBTQIAPN+, não pode faltar”.
“A minha mãe me influenciou demais e me influencia ainda. Eu tenho muita saudade da voz da minha mãe. Fotografia a gente vê, mas a voz não ouve mais. Então ela me chamava pela casa, sabe? Menino! Ô menino! Então eu escrevi pra conversar com ela, pra instaurar essa fala de volta. Minha mãe era uma mulher aperreada. Tinha frases ótimas. Toda vez colocava a gente pra dormir, dizia assim, ‘amanhã não amanheço viva’.
Eu ficava muito preocupado com isso, porque também tem uma coisa de gemido, de dor, muita dor. Aí eu saía pequenininho do meu mosquiteiro, ia ver se minha mãe estava respirando ainda, porque ela disse que ia morrer.”
Outra recordação é o horário da reza. “Seis horas da tarde. É um horário que até hoje é muito aperreado pra mim. Era um momento que apagavam-se as luzes todas da casa. Ficavam só as luzes de vela e a reza. Então, quando eu escrevo, eu escrevo rezando. Compactuando com ela”.
A mãe de Marcelino teve 14 filhos dos quais perdeu cinco. Ele é o caçula dos nove vivos. Em seu primeiro romance, Nossos Ossos, ele traz a temática LGBT, que traça a sua própria história, perpassando a história do personagem principal. “Eu fui pra São Paulo por causa de um grande amor. Tava apaixonadíssimo. Me lasquei todinho, não deu certo. A vida é feita dos amores possíveis. Eu só descobri isso chegando em São Paulo”.
Já em seu romance recente, Escalavra, ele traz o silêncio de seu pai.
Foto: Juliana de Deus/CRL
A escrita como vingança
“Tem uma coisa que muita gente diz, e que é uma coisa que faz sentido pra mim, que é escrever às vezes como vingança. E isso interfere na elaboração estética, é muito curioso. A própria Carolina Maria de Jesus dizia para as pessoas: ‘ó, vou botar vocês no meu livro’, quase como uma ameaça. E aí, em muitos momentos, eu me sinto nesse lugar”, comentou Falero.
No livro Vera, ele usa a relação da patroa, nesse sentido. “A minha mãe foi faxineira. Tu sentes essa animosidade de classe que tem ali, o tempo todo. Não só de classe, mas de raça também. Igual a minha mãe, colocada em uma posição de subalternidade que não precisava se dizer uma palavra, sabe? (..) "Naquela época, talvez eu não conseguisse pensar isso de maneira elaborada, mas eu sentia que mamãe era forte, tá ligado? Mais forte que aquela mulher."
De acordo com o escritor, no caso do livro recente teve alguns desafios novos que foi se colocar num lugar, pensando nas relações de gênero. “Em um lugar onde eu também posso cometer as minhas opressões. Foi um exercício diferente, desafiador, e que também interferiu na elaboração estética.”
Foto: Juliana de Deus/CRL
Escrita LGBTQIAPN+
Indagado sobre a literatura LGBTQIAPN+, Freire disse que seu caminho foi pavimentado por muita luta, e destacou o escritor João Silvério Trevisan, e outras referências. "Se eu já transito com mais facilidade é porque João Silvério Trevisan, Caio Fernando Abreu, Waldo Motta e tantas outras pessoas fizeram”.
Freire também ressaltou o momento aquecido e extraordinário que a literatura LGBTQIAPN+ vem passando. “E só vai melhorar, para que a gente, inclusive, passe com mais tranquilidade pelos espaços. Mas para que eu passasse mais tranquilamente, muita gente teve que sofrer muito. Atualmente há uma presença cada vez mais instigante, inspiradora e poderosa da autoria de travestis, de homens trans, de mulheres trans, é uma geração incrível.” Citando nomes como da escritora brasileira Amara Moira, das argentinas Naty Menstrua (Chuva Dourada sobre mim) e Camila Sosa Villada.
Racialização
Indagado sobre a racialização dos corpos brancos em sua obra, Tenório afirmou ser intencional, uma forma também de educar o imaginário do leitor. “Quando você não racializa um corpo, ele automaticamente vira um corpo branco, porque se tem a ideia de que o corpo branco seria esse corpo universal. E em momentos em que eu não racializo nem a pessoa negra, nem a pessoa branca, é quando eu jogo a bola para o leitor. O leitor, com as informações que ele tem, com o contexto que as coisas estão colocadas ali, é que ele comece a formar o imaginário dele”. .
“A gente quer uma outra humanidade. E essa outra humanidade tem a ver com a visão dos povos originários, tem a ver com toda a diáspora negra que teve os seus corpos sequestrados por séculos. É olhar para as nossas origens de maneira honesta e entender como nós chegamos até aqui. Porque o racismo nos distrai falando sobre racismo. A gente perde muito tempo justificando as nossas literaturas, sendo que a gente faz muitas outras coisas. O nosso sofrimento não vem só da racialização dos nossos corpos”, concluiu.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul