Casa de reza incendiada na Aldeia Mbya Guarani de Erval Seco (RS) ressurge em HQ sobre comunidade indígena
Os olhos do velho karaí Hélio Fernandes brilharam quando dois juruás que acabavam de chegar da cidade e agitavam a tranquilidade da Tekoá Gengibre naquela tarde quente de fim de outubro, lhe entregaram o pequeno impresso colorido onde logo identificou duas figuras conhecidas na capa. Contando mais de 90 anos vividos, talvez estivesse diante de uma novidade inusitada ver seu próprio rosto e o de sua esposa, a kunha karai Pará Mirim – em português chamada dona Santa -, que acompanhava o ato com olhos atentos, fumegando seu petyngua sagrado, impressos como personagens de um livreto ilustrado.
Nos últimos dias o ancião dos Mbya Guarani de Erval Seco (RS) havia tido poucos motivos para sorrir, pois, em meio a um temporal, sua Opy pegou fogo, queimando além da estrutura física onde eram realizadas as celebrações espirituais, também todos os itens rituais, instrumentos musicais e documentos. Mas a imagem na capa do pequeno impresso mostrava a imagem da Opy preservada, como era antes do fogo, em meio aos dois personagens que convidam o leitor a entrar pelas páginas e conhecer a aldeia localizada dentro do território indígena da Guarita, distante cerca de 500 km da capital Porto Alegre. Folheando as páginas, os dois anciãos voltaram a sorrir. Esperança nova brotando de onde menos se espera.
A HQ que apresenta para leitores da rede escolar de Erval Seco a Tekoá Gengibre foi produzida graças a um projeto do jornalista Douglas Schüler, responsável pelo único jornal impresso local, chamado O Especial. O sonho antigo de levar até o público mais jovem informações sobre a cultura e as tradições dos indígenas que integram a comunidade ervalsequense foi viabilizado graças ao apoio da Secretaria Municipal de Turismo, Cultura e Desporto e do financiamento do Governo Federal através do Ministério da Cultura e da Lei Paulo Gustavo. Quando o edital foi lançado, entre as diversas possibilidades, não titubeou: era hora de visitar o cacique e colocar a equipe de pesquisa, desenho e diagramação para trabalhar.
O cacique Sandro ajuda a traduzir as palavras escritas pelo juruá (não-indígena) Douglas na publicação / Marcos Antonio Corbari
“A história em quadrinhos mostra mais a parte física, apresenta referências locais, um pouco da história local, do que alguém que vai chegar pela primeira vez aqui na Tekoá Gengibre vai encontrar”, explica Schüler. “Já para você que folhear este gibi e o que apresentamos ali despertar o interesse em conhecer mais a fundo a cultura e as tradições dos Mbya Guarani, aí é preciso vir até aqui como estamos fazendo hoje. Vir com o coração aberto para aprender com pessoas que tem outro modo de vida, que vivem com simplicidade e sabedoria de forma integrada com a natureza e com a sua espiritualidade”, completa o jornalista. Para ele, o objetivo da HQ é justamente instigar que as pessoas tenham disposição para ir até o território para conhecer mais sobre o povo Mbya Guarani e a Tekoá Gengibre. “Tenho um agradecimento especial ao cacique, ao karaí e a toda comunidade que me recebeu de forma tão carinhosa e generosa para a produção deste gibi, com toda certeza eu fui a pessoa que mais aprendeu em todo esse processo”.
Para o cacique Sandro da Silva – Kuaray Mirĩ no guarani -, a publicação abre uma nova possibilidade de diálogo com outros segmentos sociais e comunitários que são próximos geograficamente, mas que por motivos culturais se mantém socialmente distantes do povo Mbya Guarani. “A mensagem que eu deixo aos leitores é que venham conhecer como é nossa tekoá, o nosso modo de viver”. O jovem líder dos guaranis de Erval Seco falou o tempo todo sentado ao lado do karaí Hélio, mostrando respeito pelos saberes do ancião. “O gibi do juruá mostra um pouco do que temos aqui, mas temos muito mais a mostrar, a compartilhar com as crianças, com os jovens, com o povo todo que quiser vir conhecer a nossa realidade, saber como é as nossas tradições”, complementa.
De volta à cidade, na Prefeitura, Juliano Pilger do Amaral, secretário de Turismo, Cultura e Desporto, demonstrou satisfação com a concretização do projeto. Relembrou de diversas ações desenvolvidas junto à aldeia, mas a HQ merece destaque: “Considero este gibi particularmente impactante, pois oferece à comunidade uma visão mais profunda e respeitosa da identidade e dos saberes da Tekoa Gengibre, reforçando a relevância da cultura indígena em nossa história local, temos uma oportunidade única de registrar e valorizar a cultura indígena, aproximando essa rica tradição de toda a nossa população local, regional e, porque não dizer, nacional”. Amaral ainda elogiou o trabalho pelo jornalista Schüler e agradeceu a todos que se dispuseram a participar dos editais operados pela secretaria através das leis Paulo Gustavo.
HQs que mostram cenários e pessoas da região
HQ foi financiada pelo edital local da Lei Paulo Gustavo, executado pela prefeitura, com recursos do Governo Federal através do Ministério da Cultura / Corbari
O jornal O Especial colocou em prática o projeto de desenvolvimento de Histórias em Quadrinhos em 2021 e, de lá para cá, tem se dedicado a escrever a história dos municípios em que circula de modo simples e ilustrado, utilizando a linguagem híbrida da arte sequencial e a ludicidade dos livros de colorir para informar, entreter e compartilhar tradição e cultura. Foram mais de 30 mil exemplares distribuídos que recuperam os principais aspectos e personagens que compõem o imaginário de cerca de 24 municípios da região Noroeste do Rio Grande do Sul.
Inicialmente foram produzidos mil exemplares da HQ Conheça a Tekoá Gengibre, que estão sendo distribuídos gratuitamente para alunos e professores da rede pública de ensino de Erval Seco. Interessados em conhecer podem entrar em contato com a secretaria de Cultura, Turismo e Desporto de Erval Seco ou com o jornal O Especial e solicitar exemplares. A disponibilização de uma edição digital está em avaliação pelos realizadores e poderá ser viabilizada em breve.
“Com os gibis estamos mostrando aspectos importantes das comunidades e, ao mesmo tempo, incentivando crianças e jovens a ler. Os resultados têm sido muito positivos, empolgantes”, afirma o jornalista Douglas Schüler. Uma primeira atividade de lançamento da HQ sobre a Tekoá Gengibre foi realizada durante a Feira do Livro de Erval Seco, ainda em outubroe, uma segunda, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), campus Frederico Westphalen, no dia 14 de novembro.
Sobre o incêndio da Opy da Tekoá Gengibre
Opy (casa de reza) foi totalmente destruída em um incêndio no final de outubro / Corbari
A Opy, casa de reza, dos Mbya Guarani de Erval Seco pegou fogo no final de outubro, durante um temporal, por causas naturais ou acidentais, segundo informou o cacique. Já estão sendo realizados esforços para viabilizar a construção de uma nova estrutura para a realização dos rituais e celebrações conduzidas pelo karaí Hélio Fernandes. A construção se dá de forma coletiva, com a mobilização de um grupo de guerreiros vindos de outros territórios para realizar os trabalhos.
Esforços coletivos foram colocados em prática a partir da visita do Brasil de Fato e do jornal O Especial à Tekoá Gengibre naquela tarde para auxiliar na reconstrução. Uma primeira sinalização positiva veio da Associação Cultural Ouviravida, dirigida pelo Maestro Tiago Flores, que juntamente com o Instituto Koinós confirmou a doação de um violão e um violino para o novo espaço. Já através da Cáritas RS está garantida a aquisição de 15 cestas de alimentos para manter o grupo de indígenas que ficará instalado no local para realizar a construção da nova estrutura.
A mobilização segue sendo construída e interessados em auxiliar podem entrar em contato pelo WhatsApp através do número (55) 996474305 para mais informações.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul