Estímulo de Milei para importações é 'duro golpe' para indústria nacional e ineficaz contra inflação, dizem analistas
As medidas anunciada pelo governo de Javier Milei de abrir as importações de produtos da cesta básica e suspender por 120 dias alguns impostos sobre essas compras é apontada por especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato como ineficaz para combater a crescente inflação no país, além de representar duro golpe para economia argentina, no contexto atual de grave recessão econômica.
Haroldo Montagu, ex-vice ministro de Economia da Argentina (2019 – 2021) e economista chefe da consultora Vectorial, aponta que abrir as importações de produtos para reduzir os preços e combater a inflação, é uma medida testada diversas vezes na Argentina, com maus resultados.
“Não garante a diminuição da inflação, mas sim o fechamento e a falência de muitas pequenas e médias empresas que se dedicam à produção desse tipo de mercadorias, que não vão conseguir encontrar o meio ou as ferramentas para competir com produtos importados de empresas maiores, que eles têm escalas de produção maiores e, portanto, custos menores.”
Alimentos, bebidas e produtos de limpeza, cuidados, higiene pessoal e medicamentos são os itens que estão na mira da medida anunciada pelo ministro da Economia, Luis Caputo. Mas críticos dizem que a concorrência será desigual, já que fabricantes argentinos pagam impostos pelos produtos necessários à produção e os importadores estarão isentos dessas taxas.
A economista argentina Agostina Myronec, da consultoria privada Ecolatina, fundada pelo ex-ministro da Economia Roberto Lavagna (2002-2005), expressa pensamento semelhante, dizendo que “a concorrência vai ser muito maior e o principal impacto, além de uma tentativa de baixar os preços, vai ser um forte golpe para a economia real do país em um contexto em que a indústria de alimentos e bebidas tem uma importância marcante”.
De acordo com os dados oficiais divulgados na terça-feira, a inflação em 12 meses chegou a 276,2% na medição feita em fevereiro, embora no caso de alimentos e bebidas o aumento tenha sido de 303,8%, em meio a uma queda drástica no consumo devido à diminuição no poder de compra das famílias, frente a um pacote de medidas ultraliberais com severo ajuste fiscal e contração da atividade econômica. A atividade industrial da Argentina caiu 12,4% em janeiro em comparação com o mesmo mês em 2023, de acordo com os últimos dados oficiais disponíveis.
Apesar de ter anunciado queda de 6 pontos da inflação em fevereiro, dado questionado pelo Centro Geral dos Trabalhadores (CGT), Myronec aponta que a expectativa para março na Argentina é de crescimento da inflação e aumentos dos preços dos alimentos, que já estão em um patamar alto.
“O Governo já sabe que a inflação vai acelerar novamente em março. Porque? Porque geralmente é um mês sazonalmente alto. Em março, por exemplo, começam as aulas. Então as mensalidades escolares aumentam muito. Portanto, espera-se uma aceleração da inflação", diz ele.
Haroldo Montagu aponta que a Argentina tem uma vantagem competitiva na produção de alimentos e consumos básicos e considera que o objetivo do governo Milei, de que as importações provocarão a queda dos preços “não é totalmente correta e nem totalmente adequada”. Ele aponta que é preciso identificar onde ocorrem os maiores aumentos na cadeia de comercialização de bens de consumo básicos e alimentos e não fazer a abertura indiscriminada dessas importações.
“Temos que rever este tipo de medidas, protegendo e cuidando da indústria nacional, mas ao mesmo tempo analisando a cadeia de produção e comercialização desses produtos para ver onde, em qual elo, se encontram os maiores aumentos e agir sobre eles.”
Mudança cambial
O governo argentino também anunciou a suspensão das restrições ao mercado de câmbio, para impor, em um segundo momento, um sistema de livre concorrência. Uma das promessas de campanha de Milei, juntamente com a “dolarização da economia”, o fim das restrições cambiais foi substituído pelo conceito de “concorrência cambial”, em que o peso argentino concorre livremente em transações com o dólar americano ou qualquer outra moeda. Segundo o ministro da Economia, a concorrência cambial baixará a inflação.
Ramon Fernandez, professor de Economia da Universidade Federal do ABC aponta que as mudanças cambiais representam, na prática, a concorrência direta do dólar com o peso. “Não dá para dolarizar a economia argentina, porque não tem a quantidade de dólares mínima suficiente para fazer isso. Então agora vão correr outras moedas, mas na prática vai conviver o dólar com o peso. Quem imagina alguém na Argentina pagando com iene? Eventualmente alguém usa euros, mas a moeda principal é o dólar.”
Para Haroldo Montagu, o sistema de livre concorrência, onde “seguramente o dólar se impõe” em relação à moeda argentina, teria “consequências muito negativas” para todo o sistema econômico: para a execução das políticas econômica, monetária e cambial, “ferramentas úteis e válidas” em contextos de crise.
“Geraria uma valorização cambial que reduziria enormemente a competitividade da Argentina. Dada a estrutura econômica e produtiva da Argentina, não é apropriado uma dolarização, mas uma reconstrução e uma defesa da moeda nacional em particular.”
Relação com o Brasil
O volume exportado pelo Brasil para a Argentina recuou 31,5% em janeiro deste ano em relação ao mesmo mês de 2023 e fez com que a participação da Argentina nas exportações brasileiras descesse a uma fatia de apenas 2,8% em janeiro, a menor para esse período do ano, segundo o Indicador de Comércio Exterior (Icomex) divulgado em fevereiro.
“As exportações brasileiras tiveram uma redução brutal, não por medida protecionista, mas simplesmente porque lá tem uma recessão descomunal, as pessoas não têm dinheiro para comprar nada. A queda nas vendas nos supermercados, no comércio em geral, é uma coisa completamente absurda”, afirma Fernandez.
Na avaliação de Haroldo Montagu, essa mudança coloca em risco as relações comerciais entre Brasil e Argentina, com intercâmbio marcado pela negociação de peças, acessórios e insumos para a indústria automobilística, dentro do acordo econômico do Mercosul.
Diante da perda de competitividade e da valorização cambial, o economista aponta uma piora da relação comercial entre os países gerando um superávit constante para o Brasil e um déficit constante para a Argentina.
“Até quando a Argentina poderia sustentar déficits comerciais crescentes com o Brasil em bens e produtos onde há certo equilíbrio? A dolarização e a concorrência de moedas não apenas não seria conveniente para a Argentina, mas tampouco seria conveniente para o Brasil, diante das regras do Mercosul que estabelecem um equilíbrio comercial entre os países.”