Haiti deveria ser indenizado por destruição causada pela missão militar da ONU, diz historiador
Duas décadas após a criação da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), o país está prestes a receber novas tropas estrangeiras, desta vez lideradas pelo Quênia. A justificativa apresentada é o combate aos grupos criminosos que controlam partes do país e que protagonizaram uma escalada de violência nas últimas semanas.
Os episódios levaram à renúncia do primeiro-ministro Ariel Henry, e a população haitiana aguarda, nos próximos dias, a nomeação de um governo de transição, formado por sete nomes escolhidos em acordo entre os partidos políticos, países da Comunidade do Caribe (Caricom) e os Estados Unidos.
Para o historiador Everaldo de Oliveira Andrade, autor do livro Haiti: dois séculos de história (Alameda Editorial, 2019), a ideia de uma intervenção externa representa uma repetição da violência contra a população haitiana. "O que se espera de uma intervenção dessa é reconstruir os instrumentos de dominação do imperialismo, principalmente dos Estados Unidos, que tratam o Haiti como uma colônia de terceira classe, sempre subordinada."
Em entrevista ao Brasil de Fato, Oliveira ressalta a necessidade de reparação histórica à população haitiana, pelos prejuízos causados pela Minustah. "O que se espera primeiro é que se reconheça os crimes que a ONU, que o Estado brasileiro e que os outros Estados impuseram ao Haiti, que se restitua, através de indenizações, a violência e o caos provocado pela intervenção da Minustah nos últimos 20 anos."
O historiador aponta que o surgimento das guangues no país remonta às milícias políticas criada na década de 1950 durante a ditadura de François Duvalier, e que se estendeu até 1986, na gestão de seu filho, Baby Doc.
"Apesar da Minustah, muitos desses grupos migraram para o crime organizado e continuaram funcionando, como forças auxiliares de grupos políticos. Embora muitos falem que são só grupos criminosos, eles têm articulação com forças políticas e se utilizam também dessas relações para manter parte do crime organizado. Isso não é algo que surgiu agora, tem décadas, e é fruto também dessa tentativa de desarticular os movimentos populares e impedir que eles possam agir de maneira autônoma e independente."
Confira a íntegra da entrevista
O que representa para o Haiti o envio de uma nova missão internacional, capitaneada pelas Nações Unidas, 20 anos depois do envio de tropas da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) ?
A questão é o que se espera dessa intervenção. Primeiro, a ideia de uma intervenção externa é novamente uma violência contra a população haitiana. O que se espera de uma intervenção dessa é reconstruir os instrumentos de dominação do imperialismo, principalmente dos Estados Unidos, que tratam o Haiti como uma colônia de terceira classe, sempre subordinada. Na verdade, o que se espera primeiro é que se reconheça os crimes que a ONU, que o Estado brasileiro e que os outros Estados que intervieram, impuseram ao Haiti. Que se restitua, através de indenizações, a violência, o caos provocado pela intervenção da Minustah nos últimos 20 anos. Isso tem que ser restituído ao Haiti através de uma indenização pela expropriação, pela violência, pelos ataques, pela destruição que foi feita pela chamada comunidade internacional com a população do Haiti. Se querem ajudar o Haiti, que ajudem com solidariedade de fato, enviando alimentos, enviando professores, enviando médicos e deixando que os haitianos, a partir de eleições democráticas, possam construir uma solução. O povo haitiano historicamente sempre teve condições e projetos, sem interferência externa, para conseguir uma alternativa própria, independente, democrática e livre para o seu país. Devemos partir desse pressuposto, que os haitianos têm condições. Porque essa violência, esse caos, são construídos de fora. Esses grupos paramilitares, essas gangues, são sustentadas por interesses de uma pequena elite política econômica que existe no Haiti, que está conectada com interesses externos. Não é algo intrínseco ao povo haitiano a violência institucionalizada e o caos. Isso é construído intencionalmente. É parte de uma política de décadas para destruir a capacidade do povo haitiano de, por si próprio, construir uma alternativa democrática para o seu país. Então, sem essa perspectiva, esse novo mandato da ONU, com soldados do Quênia, do Gana, de onde for, sempre parte do pressuposto de que os haitianos não têm condição de, por si próprios, construírem o futuro de liberdade e democracia para o seu país.
A justificativa para o envio da nova missão internacional liderada pelo Quênia é a atuação de grupos armadas, que controlam grande parte do território haitiano. Foi também a atuação das gangues que motivou a criação da Minustah há 20 anos. Qual a origem desses grupos?
Existe uma história dos grupos armados mais organizados surgindo com Tonton Macoutes, que era uma milícia que foi criada pelo François Duvalier, o Papa Doc, no final da década de 1950 e que se consolidaram na década de 1960. Eram milícias paramilitares e elas funcionavam para impor o regime político e perseguir os adversários. Com o fim da ditadura do Baby Doc, o filho do Papa Doc, em 1986, vários desses grupos, que também tinham relação com o Exército e com a polícia, migraram para o crime organizado. Mas muitos continuaram a manter um papel político de força auxiliar dos grupos mais conservadores e atuaram para reprimir, por exemplo, os grupos populares que surgiram, com o Jean Baptiste Aristide, que expressava a luta popular nos anos 1980 e 1990. E depois isso foi criando também uma cultura política muito forte, de articulação entre ação política e milícias armadas. Quando o Aristide foi derrubado no golpe de 2004, quando Estados Unidos e França o derrubaram, sequestraram o presidente e impuseram a Minustah, isso se prolongou. Apesar da Minustah, muitos desses grupos migraram para o crime organizado e continuaram funcionando, como forças auxiliares de grupos políticos. Isso se mantém até hoje. Embora muitos falem que são só grupos criminosos, eles têm articulação com forças políticas. Então eles são muitas vezes utilizados e se utilizam também dessas relações políticas para manter parte do crime organizado. Então isso não é algo que surgiu agora, tem décadas e é fruto também dessa tentativa sempre de desarticular os movimentos populares e impedir que eles possam agir de maneira autônoma e independente.
Com a queda do regime do Papa Doc e do Baby Doc no final dos anos 1980, surgiram duas grandes alas políticas que foram se configurando e o Jean Baptiste Aristide expressava uma reorganização, um ressurgimento das forças populares, principalmente dos camponeses, dos trabalhadores. Mas os membros do antigo regime, embora divididos em vários partidos, tinham em comum a manutenção das instituições corrompidas, a ditadura e o apoio sempre importante do imperialismo, principalmente dos Estados Unidos, da França e do Canadá, que deram respaldo a essas forças reacionárias que sempre combateram a possibilidade de que os movimentos populares pudessem se expressar como uma força política independente, uma alternativa democrática para o funcionamento do Haiti.
Ao olhar para os acontecimentos no Haiti durante o século 20, vemos que a trajetória do país foi marcada por intensas crises políticas agravadas por desastres naturais. Como a combinação desses fatores explica a atual configuração política e econômica do país?
Desastres naturais ocorrem. Em vários países do mundo, e no Caribe ocorrem desastres naturais: Porto Rico, República Dominicana, Jamaica, Cuba, toda a região. No entanto, o impacto econômico e político é grande, mas na dimensão do Haiti, o impacto político e econômico não se deve diretamente aos desastres naturais. Esses desastres mostram a fragilidade política e econômica do país, porque se existe uma rede de proteção, existe um Estado minimamente atuante e com recursos, ele pode fazer frente a isso com solidariedade e tudo mais. A desestruturação do Haiti não é culpa dos haitianos, claro. É culpa da intervenção constante do imperialismo para desestruturar o país, para impedir que as forças populares e a democracia possam se consolidar. Porque existem sindicatos, movimentos, igrejas, existem organizações da sociedade que sempre buscaram construir alternativas, mas foram combatidas.
E a experiência da Minustah mostra o peso importante que a intervenção militar e política de fora da ONU, através dos Estados Unidos, do Canadá e do Brasil impôs reprimindo as organizações. Então, por exemplo, na questão do terremoto de 2010, houve uma intervenção direta dos Estados Unidos, inclusive por cima da Minustah e inclusive por cima dos generais brasileiros, distribuindo recursos, impondo uma direção e privilegiando ONGs, privilegiando interesses inclusive de empresas dos Estados Unidos e de outros países, contra a possibilidade da auto organização popular do povo haitiano. Então a missão da ONU, ela representou para a população e para a política haitiana um sequestro nas possibilidades democráticas. Então, os presidentes que foram eleitos durante o período da Minustah o foram em uma situação de fraude, de manipulação, de dificuldade da população, dos trabalhadores ou dos camponeses, em se organizar de maneira autônoma, independente. Ela deixou um rastro de destruição, um rastro de repressão.