Itaipu 50 anos: saiba relação entre usina, expulsão dos Guarani na ditadura e atual conflito no PR
Neste ano em que a Itaipu Binacional comemora seus 50 anos, com série documental na Globoplay e show do cantor pop Jão, indígenas Avá Guarani no Oeste do Paraná estão tomando tiros de pistoleiros na fronteira com o Paraguai. Uma coisa aparentemente descolada da outra tem, na realidade, não só uma relação histórica causal, mas também pode ser, caso a empresa atenda a reivindicação dos indígenas, um caminho para amenizar a violência sofrida pelos Guarani que lutam para reaver seu território.
Construída durante a ditadura empresarial-militar, a barragem da Usina Hidrelétrica de Itaipu no rio Paraná fez submergir 135 mil hectares de terra. Embaixo d’água desde a década de 1980, boa parte desta área era território Avá Guarani.
Como reparação, a empresa binacional se comprometeu a adquirir fazendas que estão atualmente sobrepostas a áreas dos Avá Guarani e que, apesar de serem de ocupação tradicional, ainda não estão demarcadas. Esta negociação é, inclusive, tema da Ação Civil Originária (ACO) nº 3.555 que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF).
Uma das áreas que poderiam ser destinadas definitivamente aos Avá Guarani por meio desta medida é o atual núcleo do conflito por terra na região. A aldeia Yvy Okaju em Guaíra (PR) é uma das que foram retomadas em 5 de julho de 2024, quando os indígenas fizeram sete ocupações dentro da Terra Indígena (TI) Guasu Guavirá. Desde então, um acampamento de não indígenas foi montado ao lado da retomada e ataques armados já alvejaram 12 moradores de Yvy Okaju.
A onda mais recente de atentados contra a comunidade começou em 29 de dezembro, seguiu na virada do ano e teve o episódio mais sangrento em 3 de janeiro, com duas crianças e dois jovens baleados.
A aldeia retomada faz parte da Terra Indígena (TI) Guasu Guavirá que, sobreposta por 165 fazendas, já foi identificada e delimitada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em 2018. Desde então, no entanto, o processo demarcatório está parado por conta de uma ação impetrada pelas prefeituras de Guaíra (PR) e Terra Roxa (PR) e acatada pela Justiça Federal em primeira instância.
A continuidade da regularização do território depende de uma decisão final da Justiça nas instâncias superiores. Esta, no entanto, está também suspensa até que o Supremo Tribunal Federal (STF) decida sobre a validade ou não da Lei do Marco Temporal (nº 14.701/23). O dono da caneta é o ministro Gilmar Mendes, que optou por criar uma “comissão de conciliação” sobre o tema, postergando a decisão final.
Crianças Ava Guarani na comunidade Yvy Okaju, ao lado de onde casas foram queimadas em ataques de pistoleiros / Comunidade Ava Guarani
Aprovado pelo Congresso Nacional em setembro de 2023 – dias depois e a despeito de o STF o ter considerado inconstitucional -, o marco temporal está por enquanto em vigor no Brasil.
A tese segundo a qual só podem ser demarcadas as terras indígenas que estivessem ocupadas por seus povos originários em outubro de 1988, atinge diretamente os Avá Guarani. Expulsos de suas terras entre 1975 e 1982, quando Itaipu foi construída, não foi por escolha que eles não estavam ali na data em que a Constituição foi promulgada.
Enquanto o nó judicial não desata a demarcação, uma das formas paralelas para a regularizar as terras Avá Guarani é via Itaipu. Acontece que a TI Guasu Guavirá tem 24 mil hectares. A empresa se dispôs a comprar três mil.
Negociações 'em curso'
Ao Brasil de Fato, a Itaipu Binacional afirmou que as negociações estão no âmbito da Advocacia Geral da União (AGU), com participação da Comissão de Conflitos Fundiários do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “Já temos uma minuta de acordo, precisamos apenas da aprovação de algumas instâncias, inclusive do governo brasileiro, mas a princípio estamos realmente caminhando para um desfecho”, informou a entidade.
Questionada sobre a possibilidade de adquirir os 24 mil hectares da TI Guasu Guavirá, a Itaipu Binacional declarou entender que “dentro do que nós temos de orçamento e daquilo que é devido para a reparação histórica, é preciso adquirir mais 3 mil hectares, que vão se somar aos outros 2.200 hectares já adquiridos num passado recente”.
Defendendo o que considera “compromisso” com “seu legado socioambiental”, a Itaipu será, dentro do que tem de orçamento, uma das grandes financiadoras da Conferência da ONU sobre Mudança do Clima (COP30). “O investimento federal de R$ 4,7 bilhões, com R$ 1,3 bilhão da Itaipu, faz parte da estratégia do governo federal para tornar Belém um exemplo de urbanização sustentável”, informou a empresa.
O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) disse à reportagem que em agosto de 2024 a pasta firmou um “protocolo de intenções” com a Itaipu Binacional, visando “reparação” e “justiça socioambiental” para os indígenas afetados pela hidrelétrica. As tratativas, no entanto, “seguem em curso” e por isso “não serão comentadas”.
“Diante do passivo de demarcação de TIs no Brasil e do atraso referente ao prazo estabelecido pela Constituição, a posição do MPI é encontrar soluções que ponham fim definitivo ao ciclo de violência em conflitos fundiários que se aprofundaram ao longo de 2023 e 2024 em decorrência da Lei do Marco Temporal”, declarou em nota a pasta chefiada pela ministra Sonia Guajajara.
Aldeias arrasadas pelo fogo e a água de Itaipu
Jussara Rezende, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), estava lá em um dia de junho de 1982, no dia em que a última comunidade Avá Guarani que ainda resistia teve de se despedir da sua aldeia, na então Terra Indígena Ocoy Jacutinga. Neste dia de mudança, a aldeia inteira foi incendiada.
Além de Jussara, do cacique Fernando Martinez e sua esposa Isadora Kamba’í, estavam representantes da Itaipu, da Fundação Nacional dos Indígenas (Funai) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgãos sob comando do alto escalão do regime militar.
“Ficamos olhando até o fim. Foi horrível. Eles [os indígenas] viram – e até hoje eu tenho a cena muito presente – as casas deles de pau e palha queimando”, conta Rezende.
Com casa queimando ao fundo, servidor posa ao lado de caminhonete com o logo da Itaipu Binacional / Comissão Estadual da Verdade PR
“Me lembro até agora. E o pessoal da Itaipu comemorando. Comemorando. Finalmente eles tinham conseguido ‘resolver aquilo lá’. Porque os últimos dos últimos a sair foram os Avá Guarani”, relata a missionária. Quatro meses depois, as comportas abriram. Tudo ficou embaixo d’água.
Fotografias de julho de 1981 mostram servidores do setor jurídico da Itaipu posando em frente a casas de palha em chamas. As imagens foram cedidas de forma anônima por um ex-funcionário da empresa para a Comissão da Verdade do Paraná.
Segundo relatório da Comissão da Verdade, a queima de casas era determinação da Itaipu Binacional / Comissão Estadual da Verdade PR
“Após identificar os Guarani do oeste do Paraná enquanto ‘empecilho’ para o projeto de construção da hidrelétrica binacional”, diz o relatório da Comissão da Verdade publicado em 2014, “o Estado se esforça para removê-los e expulsá-los de suas terras, utilizando-se de uma série de artifícios, inclusive a negação de sua identidade étnica por meio da emissão de ‘laudos de aculturação’”.
A partir de 1973, quando o Tratado de Itaipu é assinado entre os governos ditatoriais do Brasil e do Paraguai, o Incra toma 12 mil hectares de terras consideradas devolutas e passa a reassentar colonos. O objetivo, segundo o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) de Guasu Guavirá, era realocar camponeses desalojados pelo Parque Nacional do Iguaçu e “limpar o terreno” para a construção da usina.
“Assim, em meio aos intensos conflitos fundiários na faixa de fronteira, o governo brasileiro investia em um projeto que levou à remoção de mais de 42 mil pessoas da região”, aponta o relatório: “Este processo de expropriação estabeleceu critérios para indenização e reassentamento que atenderam somente os detentores de títulos regulares sobre as áreas”. Não foi o caso dos indígenas.
Ainda segundo o estudo antropológico, durante a década de 1970 comunidades indígenas inteiras foram "assassinadas e atiradas no Rio Paraná, famílias removidas à força para o Paraguai, sua existência é negada por mecanismos diversos” pelo governo militar, “com intermédio da Itaipu, Incra e da própria Funai”.
“Mesmo antes da construção da hidrelétrica, os Guarani já vinham sendo expulsos pela empresa Matte Larangeira”, recorda Vilma Rios, da retomada Yvy Okaju. “Muitos Guarani trabalhavam no corte da erva mate sem ser remunerado. As famílias recebiam como recompensa permanecer na terra. Famílias que não queriam trabalhar de graça eram perseguidas, mortas. E aqueles que não queriam morrer começaram a sair do território”, narra. “Mas a construção do Lago Itaipu foi o extermínio total”, atesta: “a empresa Itaipu foi construída com o sangue do povo Avá Guarani”.
A última aldeia
Foi em Guaíra, onde está Vilma, que o conjunto de cascatas Sete Quedas, um santuário do povo Guarani, foi também submerso pela barragem. Diferente dos indígenas de Ocoy, da cidade de São Miguel do Iguaçu (PR) e que foram acompanhados pelo Cimi, os do município de Guaíra e Terra Roxa (PR) foram os primeiros a ser deslocados.
Quando Jussara Rezende chegou em Ocoy em 1981, a comunidade já estava completamente isolada. “Estavam apavorados”, diz. “O alagamento já era iminente. Os agricultores da região já tinham sido removidos. Na estrada que ligava Foz do Iguaçu (PR) a Santa Helena (PR) já não tinha mais nada, casas vazias queimadas, a linha de transmissão elétrica desativada. Um ambiente de total abandono, uma coisa muito de morte”, descreve.
“Só quem estava lá era o pequeno grupo Avá Guarani, que até então estava resistindo. E ficaram até 1982, até o último momento mesmo. Durante a noite, quando faziam os rituais deles, de repente chegavam capangas dando tiro. Para intimidar. Isso foi durante o tempo todinho, todinho. Eu ficava besta de ver”, conta Rezende.
“Naquela altura, eles não confiavam em ninguém que estivesse chegando por lá. Acho que eles não entendiam o que estava por acontecer. A única coisa que eles sabiam é que é ia chegar uma água muito grande. Era um terror”, expõe Jussara.
Para furar a barreira do idioma, o Cimi pedia que os Guarani do Vale do Ribeira e do Mato Grosso do Sul com quem já trabalhavam – como o cacique Antônio Branco e Marçal de Souza (impulsionador da organização dos povos indígenas como movimento social no país) – traduzissem mensagens do português para o guarani. Fitas cassetes viajavam de um estado para o outro e, assim, os parentes conversavam.
'Critérios de indianidade'
“Não bastou ao Estado, contudo, expulsar os Guarani de sua terra: buscou também negar sua identidade. Em 1981, Célio Horst, filho de criação de Ernesto Geisel, empunhando os ‘critérios de indianidade’ que haviam sido elaborados pelo coronel Ivan Zanoni Hausen e introduzidos nos procedimentos fraudulentos da Funai a partir de 1979, produziu laudo em que reduziu o número de famílias guarani que teriam direito à terra de 11 para quatro”, destaca o relatório da Comissão da Verdade.
Em apenas um dia, o antropólogo Célio Horst foi à comunidade de Ocoy Jacutinga e fez seu “estudo”. Para ele, a maioria das famílias não era indígena. “Era aplicado um questionário em português. Aí, conforme as respostas, havia pontos”, lembra Jussara Rezende. Entre as que não receberam seu selo identitário estava dona Francisca, que tinha 101 anos e não falava uma palavra de português. Não conseguiu responder as perguntas.
Dona Francisca, anciã Avá Guarani não reconhecida como indígena por laudo de Célio Horst, em foto tirada em 1980 / Acervo Cimi
“Tinha aquela a mesma história de agora, que não são indígenas, que são paraguaios”, critica Rezende. No último 15 de janeiro, menos de duas semanas depois de Yvy Okaju ser alvejada por pistoleiros, uma reportagem da RICtv, associada à Record, questionou a identidade indígena da comunidade. Sem apresentar provas, deu a entender se tratar de paraguaios e criminosos. Os Avá Guarani responderam com uma live de 58 minutos.
Depois de ver sua aldeia reduzida a pó e muito pressionar a Itaipu, incluindo viagens a Brasília e cobranças ao Banco Mundial (financiador do empreendimento), a comunidade liderada pelo cacique Fernando Martinez foi a única, entre a dos Avá Guarani, que recebeu um pedaço de terra em troca da que lhe foi tirada. A primeira tinha 1,5 mil hectares. A segunda, batizada também de Ocoy Jacutinga e onde se estabeleceram em 1982, 251 hectares.
Documento confidencial em que Itaipu admite
O relatório da Comissão da Verdade trouxe à tona um documento sigiloso sobre o caso, escrito em 1987 pelo então diretor jurídico de Itaipu, Clóvis Ferro Costa. “A minha convicção pessoal, hoje, é de que o pleito dos índios não é desarrazoado, de um lado; de outro, é evidente que o relatório sobre o qual se baseou Itaipu não é veraz. Digo isso em caráter confidencial, para evitar explorações judiciais e políticas”, escreve Costa.
“Os Avá Guarani foram apresentados como tendo anteriormente apenas área em torno de 34 ha. E como Itaipu transferiu-lhes cerca de 250, a nossa postura teria sido generosa. Ocorre que o dado inicial é manifestamente incorreto”, admite o então diretor da Itaipu. “Ao invés de Itaipu ter sido generosa, provavelmente terá subtraído muita área aos indígenas. É claro que não digo isso publicamente, mas, em correspondência reservada, não tenho dúvidas em suscitar o problema”, escreve Clóvis Costa.
As retomadas
No final dos anos 1980, grupos Avá Guarani dispersos nos municípios de Guaíra e Terra Roxa começam a se reagrupar em aldeias. “O movimento de retomada de terras a partir dessa época parte daqueles que estavam agrupados nas áreas dos atuais tekoha Karumbe'y e Porã, núcleos de resistência Guarani que, com o crescimento da mancha urbana de Guaíra, se viram engolidos pela cidade”, expõe o RCID.
Com o crescimento populacional nos anos 2000 estes espaços se tornam cada vez mais apertados e ganha força a luta por retomadas, fazendo surgir 13 aldeias dentro da TI Guasu Guavirá. “É quando a gente tem acesso à nossa história, a linhagem a qual pertencemos. Nós também fizemos parte, os nossos bisavós fizeram parte da história da expulsão”, afirma Vilma, jovem liderança Avá Guarani.
“Foi quando, em 2009, houve mais uma retomada e foi aí que começou a luta por um território Avá Guarani. Não era mais aldeia por aldeia, mas sim nossa grande luta por um território mesmo”, explica Vilma. “Aí que vem toda essa violência. Ataques, assassinatos de lideranças, perseguições. E hoje estamos sofrendo nesse embate. Estamos sentindo isso na pele”, relata. Ela mesma carrega no corpo estilhaços de chumbo.
“Até hoje nós estamos sentindo o impacto do passado no presente”, sintetiza Vilma Rios. “E mesmo que a Itaipu compre a área, principalmente aqui na Yvy Okaju, ainda não será suficiente”, salienta.
“Ainda assim, a Itaipu precisa adquirir essa terra e entregar para nós. Pertencemos a ela. O dono da terra não somos nós, é alguém invisível, mas presente na nossa vida em todos os momentos, seja no momento de luta, de dor, de sacrifício, de sobrevivência. Por mais que a gente não consiga ver fisicamente, a gente sente”, explica Vilma.
“O que liga a luta antiga à luta atual?”, reflete Jussara Rezende. “Num ponto em que já não era mais possível resistir, os Guarani de Jacutinga aceitam os 251 hectares. O que não é reparação, nunca será. Mas possibilitou com que de 1982 para cá, a luta se mantivesse viva”, observa a missionária. “A diferença”, avalia Vilma, “é que hoje não estamos recuando”.