Ajuste fiscal: impacto ao SUS pode ser trágico
O momento pode ser um divisor de águas. Após um mês de sinais indiretos e especulações na imprensa, ministros como Fernando Haddad (Fazenda) e Simone Tebet (Planejamento) agora afirmam abertamente que o Governo Federal deve promover cortes nas políticas sociais para cumprir com os rígidos controles de gastos impostos pelo Arcabouço Fiscal e acalmar a chamada “tensão no mercado”. Na quarta-feira (30/10), Haddad confirmou que uma Proposta de Emenda Constitucional contendo um mecanismo de limitação das despesas obrigatórias será apresentada “no mês de novembro”.
A movimentação não ficou sem resposta na sociedade: um manifesto divulgado no mesmo dia se posicionou firmemente contra a proposta de ajuste fiscal, alertando que “ceder a essa lógica de cortes e restrições não é apenas um erro econômico; é um ataque frontal aos direitos sociais e à dignidade da população”. Notavelmente, o documento teve adesão expressiva na área da Saúde, a exemplo do ex-ministro José Gomes Temporão, o diretor do Instituto de Saúde Coletiva da UFF Túlio Batista Franco, o presidente da Associação Brasileira de Economia em Saúde (ABrES) Francisco Funcia e os sanitaristas Ana Maria Costa e Itamar Lages. “O Estado brasileiro tem uma enorme dívida com a sua população e não pode, na sua política fiscal, cortar nos gastos sociais. Pelo contrário, eles devem ser uma prioridade”, afirmou Túlio a Outra Saúde.
Para muitos, a assinatura no manifesto não consiste em uma ação “contra o governo” – mas uma cobrança para que ele se atenha aos compromissos de reconstrução nacional e retomada do investimento social e no SUS que firmou ainda em 2022 com o movimento sanitário, além de todo o povo brasileiro, durante a batalha contra as forças obscurantistas que conduziam o país. “Esse é o tom necessário hoje, porque essa decisão pode levar a uma regressão muito forte das políticas sociais e do direito à saúde. Recuar frente à pressão hegemônica da direita e do mercado? Não dá”, avaliou Ana Maria Costa.
A este boletim, uma dezena de especialistas, acadêmicos de diversas áreas e parlamentares alertaram para o retrocesso que os cortes anunciados podem significar para políticas tão diversas quanto o piso constitucional da saúde e o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Os riscos, como ilustra o próprio manifesto, são claros: “Ao abandonar investimentos em áreas essenciais, o governo abre caminho para o avanço de discursos autoritários e reacionários que se alimentam do desespero e da frustração popular”.
Uma tese fiscal questionável
No âmbito da Saúde, a discussão em torno do orçamento não é nova. A nível histórico, o movimento sanitário sempre frisou a necessidade de amplos recursos para que o projeto do SUS se materializasse em toda sua potência – assim como alertou sobre o risco mortal que o subfinanciamento acarreta para a concretização dos princípios da universalidade, integralidade e equidade. Mais recentemente, como sempre relembra a própria ministra Nísia Trindade, a PEC de Transição articulada antes da posse de Lula foi decisiva para que o orçamento da Saúde fosse “o maior da história” em 2023. Porém, um terceiro fato é o que realmente faz o tema pairar no ar há mais de um ano: desde a aprovação do Arcabouço Fiscal – e Outra Saúde cobriu o imbróglio em profundidade –, o Ministério da Fazenda lança “balões de ensaio” para testar a viabilidade de flexibilizar o piso constitucional de investimentos na saúde, que prevê que 15% da Receita Corrente Líquida (RCL) anual deve ir para a área.
No raciocínio da pasta, a flexibilização do piso da saúde – ou outra das medidas atualmente em discussão, como mudanças no BPC e no seguro-desemprego – poderia garantir o espaço fiscal necessário para que o orçamento não fique estrangulado e o “equilíbrio fiscal” seja alcançado. Contudo, na avaliação do economista e presidente da ABrES, Francisco Funcia, essa hipótese é imprecisa: “O que está comprovado desde a pandemia é que aumento do gasto público não inviabiliza em hipótese alguma as contas do governo. Cortar gastos não vai trazer qualquer avanço na busca pelo equilíbrio fiscal. Pelo contrário, a teoria econômica mostra que os gastos sociais, como parte dos gastos públicos, têm um efeito dinâmico na atividade econômica. Não dá para pensar na questão do equilíbrio das contas públicas com um olhar de economia doméstica, como tem sido feito pela mídia e também por alguns setores do governo”.
Funcia aponta que os próprios recursos que o governo garantiu para o orçamento da Saúde em 2023 e 2024 “têm tido um efeito positivo para a dinâmica econômica, além de terem sido uma iniciativa importante na linha da garantia dos direitos da cidadania”, depois da tragédia que o governo Bolsonaro representou para o SUS. Isto é, a nova iniciativa de contenção dos gastos estaria em contradição com os resultados concretos da destinação de recursos para a Saúde até aqui. “Eu acho muito importante destacar que o governo começou resgatando os investimentos sociais e a nova proposta vai na contramão desse resgate”, ele ressalta.
Se é mesmo preciso que uma fatia do Orçamento federal sofra cortes drásticos, como defende a equipe econômica, o manifesto propõe outro alvo: as despesas financeiras, especialmente o pagamento de juros que beneficiam os grandes rentistas. “Nós estamos em uma situação em que a única fatia do orçamento público nacional em que não se mexe é o serviço da dívida”, critica a sanitarista Ana Maria Costa.
Impacto mortal?
Por enquanto, não foi anunciado pelo Governo se os cortes impactarão áreas específicas dos investimentos sociais ou se haverá um mecanismo geral de contenção dos gastos. Contudo, onde quer que recaiam, os prognósticos apresentados por especialistas ouvidos por Outra Saúde são de uma tragédia para a população mais pobre.
Se recair sobre a Saúde, seja na forma da flexibilização do piso de investimentos ou outra, o corte de gastos “vai acabar gerando definitivamente um SUS ruim, de baixa qualidade e insuficiente para a população. A saúde que a Constituição prometeu, que é direito de todos, já não é possível com o atual gasto de 4,2% do PIB, imagine se for menos”, avalia Ana Maria Costa. Em sua visão, o próprio projeto do SUS pode estar em jogo com a futura PEC: “É essencial que se faça essa discussão agora para salvar o projeto político da saúde como um direito universal”, defende a signatária do manifesto.
Por sua vez, caso recaiam sobre a Previdência Social, os cortes “sem dúvida vão fazer com que a velhice e a pobreza voltem a ser sinônimos”, pontua Jorge Félix, professor da EACH-USP dedicado às pesquisas sobre o envelhecimento e a economia. Se as conquistas da Constituição de 1988 tiveram o mérito de melhorar a qualidade da vida dos idosos do Brasil, a “desumana desvinculação do salário mínimo da seguridade social e a estigmatização do BPC” que vem sendo aventadas pelo Governo seriam comparáveis a uma nova Reforma da Previdência em seus efeitos para os mais velhos – gerando empobrecimento e miséria em grande escala.
Parlamentares signatários do manifesto que foram ouvidos por Outra Saúde também concentraram suas críticas nos possíveis efeitos dos cortes sobre os direitos dos brasileiros mais vulneráveis. “As suspeitas de que a busca do equilíbrio fiscal recairia na revisão ou restrição de benefícios socioassistenciais têm que ser logo afastadas. Não se pode buscar ajuste fiscal sobre os mais pobres, mas sobre os mais ricos”, opinou o deputado estadual Renato Roseno (PSOL-CE).
“A previdência pública e direitos como BPC, aposentadoria, FGTS e seguro-desemprego foram duramente conquistados e são muito importantes para garantir um mínimo de dignidade para o povo brasileiro. Para mim, a importância da mobilização em torno desse manifesto é deixar bem claro que a posição de grande parte das pessoas do campo democrático é contrária a qualquer tipo de retrocesso na assistência social e nos direitos”, complementou Luana Alves (PSOL-SP), vereadora de São Paulo e trabalhadora da saúde.
Bandeiras históricas sob ameaça
Estratégico para o clima de inevitabilidade dos cortes sociais, avaliam muitos dos entrevistados, é o bombardeio midiático intenso em prol do fiscalismo. Para a professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e estudiosa da Economia Política de Comunicação, Helena Martins, “a mídia dominante tem exercido um papel fundamental de legitimar essas ações que são restritivas de direitos e apresentá-las como única saída econômica”. Contudo, ela relembra que “em todo o mundo, já se mostrou que o ajuste fiscal pavimenta o caminho da extrema-direita e o governo comete um erro grave ao seguir nessa direção”.
No mesmo sentido, a professora da UFRJ Lena Lavinas destaca que “não é verdade que solapar direitos em nome de um regime monetário e fiscal inadequado seja a única medida ao alcance do governo para promover o desenvolvimento de uma sociedade radicalmente democrática, igualitária e comprometida com a preservação do planeta. Fazer ajustes em cima de direitos essenciais é causa de sofrimento e não caminho para o progresso. Esse governo precisa ouvir e dialogar, para não comprometer o futuro”.
“A política tem sido esvaziada do seu sentido mais pleno, alimentando a descrença e não a esperança. O exercício da cidadania exige mobilização e expressão das demandas populares, tal como faz agora este manifesto, rompendo, portanto, com o marasmo e a apatia que se abateram sobre a sociedade brasileira frustrada crescentemente nas suas expectativas pela manutenção das regras de austeridade”, continua Lavinas.
O sentimento foi ecoado por outros signatários do texto, que o tomam como o alerta definitivo para que o Governo Federal tenha clareza da temeridade que representa a decisão de dar seguimento aos cortes de gastos, pondo em risco conquistas históricas dos trabalhadores. “Se nós não tivermos o tom do manifesto daqui pra frente, vamos perder nosso papel histórico enquanto movimento sanitário. Nós saímos da pandemia com o SUS valorizado pelo povo, não é hora do medo e do recuo”, afirma Ana Costa.
“O abaixo-assinado é um ato amoroso, embora duro e contundente, de solidariedade crítica. Assim, não é o manifesto que expõe e fragiliza o governo, são as medidas que o governo diz que quer adotar”, completa Itamar Lages, professor de Enfermagem da UPE e membro do Cebes Recife.