Desmedicar a vida: alternativa urgente?
No Brasil e no mundo, a percepção de um aumento no sofrimento mental da população tem sido compartilhada não apenas por profissionais de saúde, mas também por observadores de diversas áreas. Contudo, alguns notam, outros dois fenômenos acompanharam esse primeiro: o crescimento explosivo nos diagnósticos dos chamados “transtornos mentais” e a igualmente meteórica multiplicação das prescrições de remédios psiquiátricos.
Mas seriam estes caminhos corretos para lidar com o sofrimento? Ou grandes atores econômicos estão se beneficiando indevidamente da crise de saúde mental? É o que debate o recém-publicado livro Desmedicar – a luta global contra a medicalização da vida, organizado por Paulo Amarante, psiquiatra e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz), e Robert Whitaker, jornalista norte-americano e fundador da revista de debates críticos sobre psiquiatria Mad in America.
Nesta segunda-feira (7), Outra Saúde acompanhou o lançamento do livro no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Na conversa, Amarante destacou o papel do poderoso setor farmacêutico no que os textos contidos na obra criticam como um processo de “medicalização da vida”, representado pelo aumento “abusivo” de diagnósticos e prescrições. “Há um processo de patologização avançado, com a participação da indústria farmacêutica e da grande mídia, que não influencia apenas a psiquiatria. Também afeta a educação, incidindo sobre os pedagogos e psicopedagogos”, destacou o veterano da reforma psiquiátrica.
Em sua fala, Amarante frisou que a proposta de ação dos artigos reunidos no novo livro não consiste simplesmente em uma luta para desmedicalizar, reduzindo o protagonismo dos medicamentos nos tratamentos, mas para desmedicar. “Não é só tirar do remédio, é retirar do saber médico” como único instrumento útil para lidar com esse problema, ele explica. Necessário é tratar do sofrimento como uma questão política e social, que exige muito mais do que doses regulares de fármacos para ser tratada.
Como avança a medicalização
Enquanto coletânea, Desmedicar – a luta global contra a medicalização da vida não conta apenas com escritos de seus dois organizadores. Há também contribuições do psicólogo Fernando Freitas, do ex-relator da ONU para o direito à saúde mental Dainius Püras e de uma série de outros autores acerca de temas como a necessidade urgente de transformações profundas na psiquiatria, o avanço global do negócio da medicalização da vida e os problemas da fachada científica chamado modelo “biomédico” e “organicista” da psiquiatria.
Sobre este último tema, polêmico, Amarante frisou ao público paulista que os últimos estudos não confirmam a hipótese organicista dos desequilíbrios químicos no cérebro, como nos neurotransmissores, como causa do sofrimento psíquico. Pelo contrário, as revisões mais recentes não conseguiram encontrar uma relação entre baixos níveis de serotonina e depressão, ele exemplifica.
“Mais do que uma psiquiatria positivista, penso que essa é uma psiquiatria pretensamente positivista, porque ela não consegue se basear em elementos científicos e biológicos como ela quer”, ele opina.
Mesmo com essas lacunas em sua sustentação, destaca Amarante, essa psiquiatria, tem conseguido emplacar sua proposta de diagnóstico e medicação em massa como solução mágica para o sofrimento psíquico na sociedade – não só de forma geral, mas também em âmbitos específicos.
Um deles é a Educação, onde a presença crescente dos diagnósticos psiquiátricos parece ser estimulada pela influência que a indústria farmacêutica busca desenvolver sobre pedagogos e psicopedagogos. “Há relatos inclusive de venda de diagnósticos específicos, que hoje garantem prioridade e condições especiais em alguns serviços”, ele conta. As farmacêuticas se beneficiam desse processo tendo lucros multimilionários com os remédios administrados às crianças.
Outro flanco em que se infiltraram os defensores da medicalização da vida é o do cuidado com os dependentes químicos, tema cada vez mais prioritário nas grandes metrópoles. Suas propostas parecem ter se sobreposto às dos partidários do cuidado humano e em liberdade. “Hoje, nas comunidades terapêuticas e mesmo em outros equipamentos já não se fala em tratar as pessoas, mas em tratar da dependência química. É aquela velha história que o Basaglia falava de que a psiquiatria coloca o sujeito em parênteses para tratar da doença. O que é preciso é o contrário, pôr a doença em parênteses para cuidar do sujeito”, avalia.
Desmedicar como alternativa
Aproveitando a efeméride dos cem anos do nascimento de Franco Basaglia, médico que impulsionou a reforma psiquiátrica da Itália e inspirou o processo brasileiro, Amarante reforçou que a ferramenta central para enfrentar esse processo de medicalização da vida não serão novas leis ou portarias, mas um amplo movimento em defesa do cuidado em liberdade. “O fundamental é o movimento, como sempre destacou Basaglia”, apontou Amarante.
Sua visão é que esse movimento, como aponta o título do novo livro, não pode se restringir à defesa da desmedicalização – ou seja, do questionamento aos diagnósticos e ao uso de medicamentos como ferramentas principais do cuidado em saúde mental. É preciso se abrir à hipótese de desmedicar, isto é, à possibilidade de que é preciso procurar em outro lugar, que não o saber médico, as respostas possíveis para o sofrimento que aflige a população. De certa forma, é uma recuperação dos princípios da Reforma Psiquiátrica, hoje enfrentada por uma “contrarreforma” que vai da medicalização ao surgimento de “novos manicômios”.
Em outros países da América Latina, diz Paulo Amarante, estão surgindo movimentos de usuários e trabalhadores de serviços de saúde mental que já se abrem para estas ideias. Com a publicação do novo livro, os brasileiros também ganham a oportunidade de se somar ao movimento.