Ausência de ação efetiva do Estado fortalece plataformas digitais e põe em risco nossa democracia
O mundo está preocupado com o avanço das plataformas digitais, dominadas pelas grandes empresas de tecnologia. Google, Meta (proprietária do Facebook, Instagram e Whatsapp), Microsoft, TikTok e X (antigo Twitter) têm moldado a discussão pública nos últimos anos, influenciado eleições, concentrado a circulação de informações e desafiado leis, o que torna urgente o debate sobre a regulação desses setores. A necessidade de um regramento eficaz, que estabeleça limites claros para essas corporações, tornou-se ponto central para a defesa da democracia e para a soberania dos países. Mas, afinal, como os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário têm agido, ou não, para estabelecer responsabilidades e frear o domínio dessas corporações sobre os espaços público e privado no Brasil? Desde Maquiavel, o equilíbrio entre os poderes de Estado é condição imprescindível para a existência da democracia. No entanto, a omissão de algum ou alguns deles, como no caso do tema aqui analisado, pode trazer contrapesos importantes.
Congresso: Omisso Deliberado?
O Congresso Nacional deveria ser o principal responsável pela criação de um arcabouço legal capaz de regular o poder das big techs. No entanto, o que se observa é uma atuação marcada pela morosidade e, em muitos casos, pela omissão. Um dos exemplos mais significativos nessa direção é o Projeto de Lei (PL) nº 2630/2020, que ficou conhecido como o "PL das Fake News".
Apesar de ser discutido há anos no Legislativo, o projeto não avança com a urgência necessária, mesmo diante do agravamento da disseminação de desinformação no último período e da interferência das plataformas nos processos eleitorais e nas democracias, de um modo geral. Com o propósito de estabelecer regras sobre a responsabilidade das plataformas digitais na moderação de conteúdo, maior transparência em sua atuação e, com isso, ajudar no combate à desinformação, o PL enfrenta constantes adiamentos de votação e pressões do lobby das próprias big techs. Além, claro, de sofrer forte resistência de parlamentares que usam de suas redes para propagar desinformação e discursos de ódio, se beneficiando dessa lógica para fazer desses lugares seus palanques virtuais. Na última eleição, por exemplo, sequer saberíamos quem regionalmente estava fazendo anúncios eleitorais porque a Meta não estava disponibilizando sua biblioteca de anúncios com esse recorte. Após pressão do movimento Sleeping Giants Brasil e do Intervozes, por meio da campanha #BlackRockDoSomething – direcionada à segunda maior acionista do grupo Alphabet e uma das maiores gestoras de investimento do mundo, que abarca empresas do agronegócio, industria de alimentos, armas e farmacêuticas, velhas conhecidas da bancada BBB (bala, bíblia e boi) do Congresso Nacional – a biblioteca foi disponibilizada às vésperas das eleições, apesar de ainda muito aquém do que pesquisadores e a sociedade almejavam.
Essa falta de interesse no enfrentamento ao desafio da regulação das plataformas pelo Parlamento brasileiro não é à toa. Quando começamos a puxar os fios das relações políticas e econômicas entre intentos dos parlamentares e lógicas das plataformas, percebemos que essa costura vai se alinhavando por completo. Enquanto os países membros da União Europeia estabelecem marcos regulatórios como o Digital Services Act (DSA) e o Digital Markets Act (DMA), o Legislativo brasileiro permanece paralisado, sem capacidade para formular uma legislação que trate de temas como a transparência de algoritmos e a moderação de conteúdo, privacidade de dados e controle de práticas monopolistas. Em casos inéditos publicados recentemente, a Comissão Europeia chegou a multar a Google em 2,4 bilhões de euros, por favorecer seus próprios serviços na busca por anúncios, e ordenar que a Apple reembolse a Irlanda em 13 bilhões de euros por impostos atrasados.
E por aqui?
No Brasil, essa omissão legislativa tem consequências graves. O domínio das big techs sobre o debate público travado em redes sociais, sem uma regulação explícita, coloca em risco a soberania nacional, permitindo que essas empresas operem sem limites em suas práticas comerciais, em sua influência sobre a política e a opinião pública, e desrespeitem legislações nacionais como a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Defesa do Consumidor, por exemplo.
Judiciário: Caminhos pela Judicialização
Diante da omissão do Legislativo, o Judiciário tem se tornado o principal responsável por enfrentar as questões ligadas às plataformas digitais no Brasil, para o bem ou para o mal. O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) têm sido protagonistas em diversas decisões que impactam diretamente a atuação das big techs. Quem já não recebeu um meme do Xandão sobre isso?
Brincadeiras à parte, nos últimos anos, especialmente nas recentes eleições presidenciais, essas instâncias vêm se debruçando sobre matérias relacionadas ao papel das plataformas digitais, principalmente em casos que envolvem a disseminação de desinformação e os ataques à democracia. O bloqueio temporário de plataformas como o Telegram, durante as eleições de 2022, é um exemplo de como o Judiciário age na tentativa de preencher o vazio legislativo.
Por um lado, essas ações evidenciam a fragilidade de um sistema que depende da judicialização como recurso para conter abusos. Por outro, porém, ao limitar a liberdade de expressão de todos os cidadãos e cidadãs, representa também a produção de excessos e riscos democráticos. Ou seja, muitas dessas decisões judiciais, por vezes, violam direitos, já que não encontram sustentação numa legislação específica e estruturada para o tema. A reflexão fica sempre sobre quando o lado historicamente mais frágil da corda arrebentar e essas censuras e limites atacarem mais a democracia do que o conteúdo julgado ruim, como o que concordamos em impor limites. No velho português, qual é o limite da censura do Xandão? Até quando ele estará do lado, digamos, certo, em defesa da democracia?
Executivo: Tentativas e Dificuldades
O Poder Executivo, por sua vez, enfrenta desafios políticos e econômicos para avançar no diálogo com o Congresso Nacional sobre a regulação das big techs. Desde o Marco Civil da Internet, aprovado em 2014, e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), de 2018, o Brasil deu importantes passos na criação de direitos e deveres no ambiente digital. No entanto, temas como a regulação econômica das plataformas e a própria articulação para aprovação do PL nº 2630/2020 não ingressaram na agenda do governo como uma prioridade.
Em alguns países, há sinais de avanço em relação à regulação econômica das plataformas. Nos Estados Unidos, por exemplo, o governo intensificou investigações antitruste contra Facebook, Google e Amazon, buscando coibir práticas monopolistas e garantir maior transparência.
Aqui, as tentativas partem da Secretaria da Comunicação Social (Secom), que tem atuado em infinitos diálogos com todas as partes que passam pelas plataformas e os outros poderes, além de uma tentativa de agência de checagem de desinformação sobre ações do governo e uma Instrução Normativa Secom (nº 4/2024), que traz mitigação de risco de publicidade digital.
Episódios marcantes no Brasil e no Mundo
Os problemas decorrentes da falta de regulação das big techs já são conhecidos. Diversos episódios, tanto no Brasil quanto em outros países, demonstram como a ausência de regras claras tem permitido que essas plataformas operem de forma a violar direitos, tornando o debate sobre regulação um tema emergente no mundo todo:
Cambridge Analytica (2018): O escândalo envolvendo o uso indevido de dados de usuários do Facebook para influenciar eleições no Reino Unido e nos EUA foi um dos primeiros alertas de como as big techs podem comprometer processos democráticos. O caso evidenciou a falta de controle e a ausência de transparência no uso de dados pessoais.
Eleições no Brasil (2018 e 2022): A disseminação de fake news no Brasil, amplificada por redes sociais e aplicativos de mensagens como o WhatsApp, demonstrou a fragilidade das democracias diante da desinformação. O papel das plataformas foi questionado, mas faltam leis que as responsabilizem de forma efetiva.
Alemanha (2018): A criação da Netzwerk Durchsetzung Geset (NetzDG), “Lei de Aplicação na Internet”, trouxe a ideia de responsabilização das plataformas, abordando deveres de transparência e mitigação de riscos sistêmicos.
União Europeia (2020): O Digital Services Act (DSA) e o Digital Markets Act (DMA) foram criados para impor limites às big techs, na tentativa de promover maior transparência e proteção aos direitos dos cidadãos.
O Que Vem Depois?
Limitar o poder de figuras como Elon Musk é, sem dúvida, um passo essencial para a defesa da democracia, mas é apenas o começo. Impor limites às plataformas não é uma questão de frear o avanço de uma empresa, mas de garantir que elas operem sob normas cristalinas que respeitem a democracia, a privacidade e os direitos humanos. Para isso, é essencial a criação de um arcabouço regulatório global que trate de questões como desinformação, privacidade de dados, transparência de algoritmos e concentração de mercado.
O que está em jogo é mais do que a regulação em si das plataformas digitais; é a própria soberania tecnológica nacional. Sem um controle adequado das big techs, corremos o risco de continuar reféns de interesses privados que não respondem às demandas sociais e democráticas do Brasil.
O desafio de regular plataformas e big techs vai muito além de limitar a atuação de indivíduos e uma determinada empresa ou bilionário. O debate é sobre a capacidade das nações de, com a participação ativa da sociedade, proteger suas democracias contra o poder desmedido das corporações, ou seja, esse também é um debate econômico. No entanto, sem uma atuação coordenada dos poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, e comprometida com a democracia do país, continuaremos vulneráveis neste tema. A omissão já não é mais uma opção para nós.
*Ramênia Vieira é jornalista, especialista em Gestão de Políticas Públicas e integra a coordenação executiva do Intervozes.
**Viviane Tavares é jornalista, mestre em Tecnologias da Comunicação, pesquisadora da área de políticas públicas e direitos digitais e integrante do Intervozes.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
****Este texto faz parte da série "O X da Questão: big techs e soberania tecnológica", parceria entre Brasil de Fato e Intervozes