A luta dos Yanomami na Sapucaí
Na primeira noite dos desfiles das escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro, no domingo (11), a Acadêmicos do Salgueiro levará de forma inédita à Marquês de Sapucaí termos e frases da língua Yanomami. Eles fazem parte do enredo deste ano da escola, “Hutukara”, que na cultura Yanomami faz referência ao céu ancestral que desabou sobre a terra nos primórdios e, hoje, forma a terra-floresta que cobre o planeta.
O desfile da tradicional agremiação vai homenagear a luta pelo território e as belezas do povo Yanomami, com o mote do sonho de um Brasil indígena, um Brasil cocar, como diz a letra do samba escolhido para a apresentação. O samba-enredo é assinado pelos compositores Marcelo Motta, Pedrinho da Flor, Arlindinho Cruz, Renato Galante, Dudu Nobre, Leonardo Gallo, Ramon Via13 e Ralfe Ribeiro.
O livro “A queda do céu” (Companhia das Letras, 2010), obra da maior liderança dos Yanomami, Davi Kopenawa, em parceria com o antropólogo francês Bruce Albert, é uma das bases para o desenvolvimento do enredo do carnavalesco Edson Pereira.
Militares retiram tropas e equipamentos enquanto garimpeiros voltam à terra Yanomami
“Eles compraram o meu livro e leram tudo sobre a minha história, desde quando eu era menino até o primeiro contato com os invasores que chegaram na minha comunidade. Esse livro conta a história do meu povo e o Salgueiro achou muito bonito mesmo, eles acham que é um pensamento diferente”, contou Davi Kopenawa, em entrevista à Amazônia Real.
No refrão, os salgueirenses entoam: “Ya temi xoa, aê, êa! Ya temi xoa, aê, êa!”; que significa: “eu ainda estou vivo”, na língua Yanomae, uma das seis línguas da família Yanomami. Para o grande líder, que também é xamã, é importante que a escola mostre os verdadeiros Yanomami, sua sabedoria e cultura, para além da imagem da tragédia que atinge esse povo. “Os Yanomami precisam estar lá para defender o povo indígena. Yanomami quer falar a própria língua dele”.
O primeiro encontro entre Davi Kopenawa e representantes da escola de samba aconteceu em março do ano passado, em São Paulo, logo após o anúncio da homenagem. Ele participou do processo de construção do enredo com ajuda do indigenista Marcos Wesley, do Instituto Socioambiental (ISA), que atuou como mediador entre a agremiação e os Yanomami.
“O Salgueiro falou que, além de homenagear o Davi, queria contar uma história verdadeira e que os Yanomami também quisessem contar essa história. A partir disso, o Davi me escalou para ir acompanhando e dando informações a eles, por meio dos livros, das matérias que fazemos sobre o garimpo. Eu tenho feito essa interlocução bastante frequente com o pessoal do Salgueiro”, relata o indigenista, que trabalha há 27 anos com os Yanomami.
Carnaval de São Paulo tem cultura africana como destaque na primeira noite
Wesley conta que, durante o encontro, Davi pediu enfaticamente que o Salgueiro contasse a história real dos Yanomami e da sua visão de mundo, e não uma história genérica sobre povos indígenas. “Ele disse que eles tinham que conhecer e ler sobre os Yanomami, que não falassem só do sofrimento, das injustiças que estão sofrendo, principalmente com o garimpo, mas também falassem sobre a beleza do conhecimento e da sabedoria que os Yanomami têm sobre as florestas e sobre como viver bem”.
O mergulho nesse universo ficou a cargo do jornalista e enredista Igor Ricardo. Para ele, o desafio foi transformar em Carnaval um tema que as pessoas só veem na televisão pela ótica da tragédia. “O desfile do Salgueiro é um contraponto a essa tragédia. A gente quer mostrar a beleza que tem esse povo”.
A bibliografia disponibilizada e as trocas com Davi Kopenawa inspiraram o Salgueiro na construção do desfile, na produção das fantasias, adereços e carros alegóricos, uma vez que os salgueirenses não puderam estar fisicamente presentes na Terra Indígena Yanomami. Já Davi Kopenawa visitou o Morro do Salgueiro, berço da escola no Rio de Janeiro, em outubro de 2023.
“Percebi que eles fizeram um trabalho sério e se dedicaram. Eles leram para poder colocar na avenida os Yanomami de fato e não um indígena genérico. Tanto que eles foram apresentando para o Davi, em algumas ocasiões, e ele também foi concordando e foi se agradando do que via sobre fantasias, sobre os carros alegóricos e sobre a história que está sendo contada por eles”, ressalta Marcos Wesley.
Davi Kopenawa acredita que, ao representar os Yanomami em sua verdadeira cultura, o enredo pode ajudar a divulgar a situação do seu povo, que está doente e tem o território atacado e destruído pelo garimpo. Para ele, essa aliança vai ser uma força contra os invasores da terra-floresta.
“O rio está sujo, tem muita doença misturada com a malária, gripe, vômito, verminose e também a doença que atacou muitos de nós, que foi o coronavírus. Chegou em 2020 e contaminou tudo. É por isso que eles [Salgueiro] têm que estar do nosso lado, do povo indígena. Nós precisamos que eles estejam ao nosso lado para proteger e defender os Yanomami. O Salgueiro vai falar pelo nome do meu povo para pressionar os estados de Brasília, Amazonas e Roraima, que estão matando o meu povo Yanomami e matando a natureza ”, denuncia a liderança.
Sonia Guajajara faz balanço de ações na TI Yanomami e cita 'descaso histórico' como obstáculo para superar crise
No final de janeiro, uma nota técnica da Hutukara Associação Yanomami denunciou que a crise humanitária continua na Terra Indígena, apesar das medidas emergencias adotadas pelo governo Lula no início de 2023. Com novas estratégias, garimpeiros avançam na exploração ilegal no território. Essas estratégias, aliadas a uma desarticulação nas ações de combate por parte do governo federal, provocam efeitos nocivos à população Yanomami.
Marcos Wesley espera que os Yanomami sejam valorizados pelo conhecimento que têm sobre a floresta e sobre como estar no mundo, sabedoria considerada por ele imprescindível para combater a crise climática que estamos vivenciando. “A gente precisa ter novos paradigmas de como estar neste planeta, e eu acho que os povos indígenas podem nos ensinar muito sobre isso. Além disso, espero que os Yanomami encontrem aliados para defender os seus direitos. Porque, infelizmente, os Yanomami continuam tendo seus direitos de território violados, invadidos, seu sistema de saúde precário e insuficiente, a degradação ambiental que o garimpo causa, a violência que tem lá dentro. Que esse carnaval atinja ainda mais pessoas para aprender com os Yanomami e ajudar na defesa dos seus direitos”.
O desfile
Davi Kopenawa visita o barracão da Salgueiro (Foto Lucas Landau/ISA)
Cerca de 14 Yanomami vão estar ao lado de Davi Kopenawa no desfile na Sapucaí, “para defender o nome deles e onde eles moram”, afirma o líder indígena. Ele vai sair no último carro alegórico, junto a outros líderes indígenas como Ailton Krenak , Dário Kopenawa e a ministra Sônia Guajajara (Povos Indígenas), além de convidados Munduruku e Kayapó. Também irão desfilar artistas Ye’kwana, a outra etnia que vive na Terra Indígena Yanomami.
Davi Kopenawa trará ainda dois xamãs para fazer no desfile o ritual de evocação dos xapiri, guardiões invisíveis da floresta. “O Davi pediu que eles estejam lá para que façam xamanismo durante o desfile, para que os espíritos da floresta possam estar na Sapucaí e tocar corações e mentes das pessoas”, explica Marcos Wesley.
Entre as lideranças femininas convidadas para desfilar está a pesquisadora, escritora e artista Ehuana Yaira Yanomami, que será homenageada em uma das alas. Nascida na região do Demini (Watoriki), uma das 350 aldeias da Terra Indígena Yanomami e mesma comunidade onde cresceu Davi Kopenawa, Ehuana é considerada uma liderança ativa para as mulheres indígenas. Ela foi a primeira mulher de sua etnia a escrever um livro em sua própria língua: “Yɨpɨmuwi thëã oni: Palavras escritas sobre menstruação”, baseado no seu estudo sobre as mudanças geracionais dos rituais de primeira menstruação do seu povo.
Ehuana, que em 2010 se tornou a primeira professora mulher da aldeia, também ilustra e já levou para a França, Estados Unidos e Itália os seus desenhos, que retratam o cotidiano da mulher Yanomami, como os cuidados com os filhos, os partos e a reclusão da primeira menstruação.
Outra liderança feminina convidada para o desfile é a professora indígena Carlinha Yanomami, presidenta da Associação das Mulheres Yanomami KUMIRAYOMA (AMYK), da aldeia Maturacá, em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. Em entrevista à Amazônia Real, Carlinha diz que recebeu a notícia da Hutukara Associação Yanomami. “Como mulher Yanomami, guerreira da selva, fico muito emocionada porque em um evento tão importante vai se fazer a presença dos próprios Yanomami”.
Para ela, é um momento histórico. Carlinha espera que os aliados ajudem a expandir a história Yanomami no mundo inteiro. “O Carnaval vai mostrar que somos um povo resistente e que a nossa história é importante para o povo brasileiro“.